Pular para o conteúdo principal

QUEM TEM TATUAGEM É SUSPEITO DE ARRUAÇA E LIBERTINAGENS

Um parafuso saindo de um casulo, como se fosse um bicho da seda, porém não. Um parafuso. Sim. A criatura metamorfoseada sobre a escápula do rapaz era a peça usada para prender partes em partes e nada tinha da sutileza de uma transformação biológica. Uma das tatuagens mais enigmáticas que já avistei.

O leitor que por acaso vá correndo os olhos descontraídos por sua linha do tempo e se depare com meu título acima certamente será tomado dos pés à cabeça por um brusco sobressalto, um repelão, um solavanco. Afinal, quem na atualidade é capaz de ignorar que a tatuagem deixou de ser um estigma dos tempos passados para passar à modinha da ocasião? Atualmente, conforme já disse em outro texto, quem não possui nenhuma tatuagem é que é diferente, por assim dizer.

Mas a coisa não funciona bem assim em todos os ermos situados abaixo da linha do equador. Há ainda os nascidos pouco antes ou pouco depois da segunda metade do século que expirou e que fazem questão de evitar papo com pessoas que exponham as marcas artificiais impressas na pele e pagas em diversas parcelas no cartão de crédito.

Em lugares aonde o tórax vai nu e apenas a parte debaixo da vestimenta é de uso obrigatório, lugares como saunas, por exemplo, não há como os tatuados omitirem do seu dorso, dos membros ou do pescoço suas marcas encomendadas.

Arrependidos ou satisfeitos são obrigados a exibir seus tribais, suas caveiras mexicanas, seus nomes de familiares, parentes e amigos, suas rosas dentadas e serpentes coloridas, seus beija-flores e aranhas, golfinhos e distintivos de clubes, e coisas indefiníveis, e coisas indecifráveis, e outras coisas indizíveis até.

Aos olhos do bom ancião conservador, aquele pobre sujeito marcado por vontade própria não merece confiança alguma. Como não podem impedi-lo de entrar nos lugares públicos, esperam que ao menos eles, os próprios tatuados, tenham a consciência e o bom siso de não tentar ingresso nos assuntos que circulam nas rodas de conversa das gentes de bem. Deveriam antes permanecer mudos e arrependidos, reflexivos.

Mas eu presenciei o conflito moral e agora posso tentar trazê-lo à luz (ou treva) da rede social. Ocorreu numa manhã de sábado, no salão de estética. O ancião fazia uma limpeza de pele, enquanto o rapaz tatuado fazia uma vigorosa esfoliação geral deixando à mostra suas costas com o tal parafuso recém saído do casulo.

Naquela ocasião, havia outros dois clientes no mesmo horário. Cada qual travava um assunto. Todos seguiam animados em uma conversa comum. O tatuado bem que tentava se entrosar, porém, toda vez que tomava a palavra, a conversa morria subitamente e os demais clientes apenas entreolhavam-se em uma concordância plena e silenciosa de censura.

E não era porque o tatuado se saísse mal na conversação não. Falavam de carro, conhecia até os motores. Falavam de pessoas, conhecia todas. Falavam de pescaria, conhecia os rios, peixes e lugares. Mas aquela tatuagem... Aquilo incomodava. Na visão do ancião, aquilo, além de ser uma marca grotesca, era também uma criatura repulsiva. A tatuagem e o rapaz compunham uma simbiose, e que deveria ficar em silêncio.

Comentários

  1. Oi Jeferson, que prazer eu de novo por aqui lendo esse belo texto, pois é, as pessoas mais velhas não aceitam essas modernidades, são preconceituosos, eu não sou adepta à tatuagem em minha pele, mas não discrimino, tenho neto adolescente que tem uma, embora discreta, mas tem, é moda, o problema é que se a pessoa se arrepende tem de ficar com a tatuagem para sempre ou gastar dobrado para a remover, só isso!
    Gostei do texto!
    Abraços!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Ivone! Que bom que gostou! Obrigado por sua atenção. Beijo!

      Excluir
  2. Como as pessoas são engraçadas, não?!
    Falam tanto de preconceito e etc...
    Mas, na hora de demonstrar um equilíbrio, bem... Simplesmente não conseguem...
    É interessante ver que nem todas as pessoas tatuadas são más pessoas e que nem toda pele lisa é boa pessoa...
    O que define a pessoa vai muito além das marcas no corpo...
    Vai alem de qualquer concepção...
    Portanto, por que não nos despimos dos pré conceitos antes de olhar para alguém???
    Belo texto!!!

    Bjo, bjo!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Tem toda razão, Rebeca. Obrigado por compartilhar aqui. Grande beijo!

      Excluir
  3. Parabéns Jefh Cardoso! Todo ser que colabora com a leitura merece louvor! Que todos possam ter acesso a este mundo delicioso que é o mundo da Literatura.

    ResponderExcluir
  4. Gostei do seu texto, estava pensando em fazer um post no meu sobre isso, pois tenho muitas tatuagens e as pessoas sempre me olham torto quando veem, mas uma coisa que eu aprendi é que tudo evolui menos a cabeça de algumas pessoas, aprendi também que não adianta bater de frente e sim ignorar a ignorância delas. Abraços.

    ResponderExcluir
  5. Jefh você é um dos mais interessantes e talentosos escritores que tive a honra de ler... Parabéns, é um dom de valor inestimável. Grande abraço, querido, continue fazendo a diferença nessa vida, nesse mundão de meu deus...

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Comente. É isso que o autor espera de você, leitor.

Postagens mais visitadas deste blog

O Sr. e o Dr.

Ao ser levado à presença daquele Sr de seus maturados 84 anos, estava na verdade indo rever um bom pedaço de minha infância. Afinal, aquele homem de baixa estatura, tórax roliço e finas pernas de passarinho era figura muito frequente nas ruas mais movimentadas de minha terra, há uns 20 anos. Vestido com um jaleco branco sentava com boa postura em sua “motoquinha”, percorria toda cidade com seu jeito lépido. Mas agora ele se encontrava muitos anos à frente daqueles dias; e já não mais conservara sua autonomia para o “ir e vir” a toda parte. Pior ainda, naquele momento sofria com a recuperação de uma fratura no fêmur, ocorrida após uma queda dentro de sua própria casa. _Quão dura é a realidade do ancião que de andar dentro do próprio lar, pode quebrar-se ao chão, isso quando não se quebra de pé, sem mais nem menos, indo apenas posteriormente ao solo, ao que chamam de fratura espontânea. Mas retornemos ao nosso “continho”. Dia após dia, sessão após sessão, meu novo amigo ancião, recuperav...

É Primavera

Era uma manhã de setembro quando o velho Alincourt chegou diante do belo lago de minha cidade, estacou sobre um terreno baldio sito à margem direita, ergueu ao alto os dois braços com ambos os punhos cerrados e vibrou de modo indescritível. No punho esquerdo o velho trouxe uma porção de terra em pó, poeira formada por noventa dias de estiagem. Ao abrir aquela mão, os vigorosos ventos de setembro levaram consigo a terra, que se desprendia e esvaía pelos ares, formando uma fina nuvem de poeira vermelha a andar no ar. O céu tornara-se vermelho, assim como a própria terra do lugar. Da mesma mão desprenderam-se folhas secas. Incontáveis folhas em tonalidades marrons, beges, amarelas. Um enorme urubu, atraído por um odor propagado pelo vento, passou a oferecer uma sombra circular sobre a cabeça do velho. Após a primeira ave, vieram outras da mesma espécie. Em pouco tempo eram seis, vinte e duas, trinta e cinco, cinqüenta e uma, mais de cento e três. Os ventos anunciaram uma carcaça canina...

Cartas a Tás (20 de 60)

Ituverava, 30 de junho de 2009 Aqui estamos, Tás. Eu e essa simpatia que é Lucília Junqueira de Almeida Prado, autora de mais de 65 livros publicados, capaz de recitar poemas de sua autoria compostos com cantigas de roça, bem como poemas de Cora Coralina, feito uma menina sobre o palco. Estive novamente na feira do livro, engoli meu orgulho de vez e abracei a causa. Fui lá não para vingar-me, com críticas sobre o fabuloso evento, nutridas por minha derrota no prêmio Cora Coralina, mas sim, para divulgar a campanha Cartas a Tás, que agora ganhou um slogan; “Restitua a cidadania do menino encardido que ficou famoso e apátrida”. Tás, você é de Ituverava e Ituverava é sua, irmão. Espero que aprove, meu mestre, pois para servir nesta batalha tive que ser um bom perdedor. E não é bom perder, isso aprendemos nos primeiros anos de existência, acho até que já nascemos com este instinto, pois quando uma criança toma por força algum objeto que por ventura esteja em nossa posse, qual menino não se...