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SPEEK LEE, O CÃO TRAFICANTE

Nunca imaginei um dia sentir falta daquele bicho infeliz com sua cara parva inabalável esperando platonicamente por um afago de minha parte. E pra dizer a verdade e fazer da sinceridade minha única diretriz, não sou o tipo que afaga bichos e depois permanece cinicamente sem lavar as mãos só para fazer tipo.

Até a última vez em que o vi, ele era branco, com poucas e grandes manchas negras espalhadas por sua rala pelagem. Dotado de porte rigorosamente médio, era ele todo medíocre. A impressão que eu tinha é de que o bicho ficava atado eternamente por uma curta corrente ao arame estendido à distância de cinco metros indo de um caibro a outro de sustentação da frágil cobertura de telhas de amianto que servia por abrigo do carro. No entanto, sua dona sempre afirmava que ele dava lá suas escapadelas pelas redondezas. Se isso realmente acontecia, algo que não posso afirmar, pois jamais o vi solto, deveria ser um momento de profundo êxtase e gozo de liberdade nas asas da mais pura vadiagem canina. Algo como cheirar rabos de forma promiscua e indistinta, revirar os sacos de lixo de todo o universo daquela periferia, tomar água batizada por desinfetante empoçada nas margens das calçadas, trocar fluidos e parasitas com os demais vagabundos da comunidade, trotar junto à turba dos semelhantes famintos por alimento e saturados de lascívia.

Toda vez que eu chegava era sempre o mesmo sufoco. Eu tinha que esperar até vir alguém da casa pisar sobre a corrente do bicho para que ele, em seu surto de alegria tola, não me pulasse sobre as pernas sujando as minhas calças com suas patas molhadas em sua própria urina. Verdade é que, o animal tinha lá sua graça. Talvez fosse por seus modos festivos, pois era dotado de uma alegria incontrolável, agitada, histérica, gratuita, saltitante e contorcida. Muito provavelmente aquilo se desse pela ocorrência de um dos raros momentos em que lhe era destinada alguma atenção e pronunciado seu nome absurdo: “Speek Lee, quieto!”

Não sei de quem foi a idéia de escolher um nome americano e de um famoso cineasta para um cão vira latas branco, brasileiro. Bem, mas isso é o que menos importa. A simplicidade tem lá seus caprichos particulares e até mesmo certa sofisticação quando exibe seu humor em detrimento do resto de tudo, sendo capaz de dar nomes incríveis apenas para ter o gosto de algo sofisticado que dizer na vida. E no mais, ao menos até aqui, ninguém deve ser censurado por escolher um nome extravagante para um cão.

E pra falar a verdade e retomar o foco, triste mesmo foi constatar que, onde antes havia a presença esfuziante do bicho, restou apenas o estúpido arame estendido de caibro a caibro e a corrente corrediça atada e abandonada em um ponto qualquer da extensão sob o inapelável vigor da lei de Newton. Aquele vazio da presilha que atava a coleira do animal ao elo da corrente assumiu um assombroso ar de melancolia. E aquilo seria algo crescente a cada dia de sumiço do pobre infeliz feliz. Se alguém quisesse escolher uma alegoria perfeita para uma campanha publicitária designar uma ausência, tirando a canção “Naquela mesa ta faltando ele; E a saudade dele ta doendo em mim”, a qual conheci na voz do saudoso Nelson Gonçalves, a corrente vazia do Speek Lee seria a imagem ideal ao caso.

No exato dia em que dei pela ausência do cão, perguntei sobre o bicho e a dona forneceu a seguinte resposta: “Ele escapuliu. Ele sempre dá as fugidas dele. Daqui um pouco ele volta com sede e fome”.

Na semana seguinte, o prognóstico não se confirmou. Já contava uma semana desde o desaparecimento do bicho. Diante à notória facilidade que tive para entrar na casa, perguntei novamente pela criatura desaparecida. A dona, com seu rosto rústico e de profundas fendas entalhadas por uma vida de agruras em série, disse com um pesar de alto teor dramático: “Alguém roubou o Speek Lee!”.

Vendo meu leve e providencial espanto, acrescentou que acreditava saber quem o havia surrupiado. Atestou que aquilo certamente seria obra dos traficantes da baixada que agora mantinham Speek Lee encarcerado em algum obscuro quintal.

Achei um tanto fantasioso o relato, porém, de boa fé, creditei crença sincera ao caso. Foi aí que a dona se sentiu à vontade para contar as minúcias do ocorrido: “Ele deve de tá bem perto. Eu escuto o latido dele. É de madrugada que ele fica mais desesperado e late até não poder mais. Late junto com a cachorrada toda da vizinhança. Nunca vi ter tanto cachorro igual aqui! No seu bairro tem muito cachorro? Aqui tem demais! Sabe, foram os traficantes que pegaram o Speek Lee. Os traficantes estão acabando com tudo aqui. Outro dia, ali na esquina, pediram a bolsa duma mulher e ela não quis dar. Aí o traficante bateu nela até ela entregar. A polícia veio, mas só conseguiu pegar de volta a bolsa vazia e o celular sem créditos. O dinheiro eles deram um fim. Compraram tudo em droga... Que Deus me perdoe, a gente não deve desejar o mal de ninguém não, mas eu acho que deveriam era cortar as mãos deles; assim não roubariam mais ninguém.”

“E a senhora acha que ainda pode recuperar o Speek?” “O Speek Lee? Sei lá! Vai saber. Essa gente tem o coração muito ruim. Mas eu ainda ouço o latido dele. Ele tá bem perto.” Neste momento, a mulher fez uma pausa olhando para o céu acima do telhado de amianto como se apurasse a audição a fim de encontrar o som da suposta agonia do bicho.

E como é que você vai dizer à pessoa que um dia o cão para de latir ou por desistência ou por comodismo? Vai que na casa do traficante ele recebeu um nome mais condizente com sua condição existencial, e vai que o senhor traficante lhe dá uma boa ração ao invés de apenas restos de comida. E vai que na casa do bandido o fio onde ele permaneça atado seja mais extenso ou até mesmo inexistente. Pior, e se lá houver também pequenos filhos do traficante para brincar e alegrar os dias do pobre cãozinho? Tudo isso sem considerar que o Speek Lee pode também ter tomado essa opção na vida após ter recebido muitos agrados e delícias à porta da casa do transgressor da lei e então, quedado na marginalidade, atraído por suas benesses, tenha então decidido ir pro crime de uma vez e por vontade própria. O cão pode sim estar agora na mais profunda marginalidade. Digo em questão de conivência e cumplicidade, uma vez que cães não comercializam drogas. Ao menos não em meu bairro. Em seu bairro cães trabalham para o tráfico? Não sou muito de noticiários, mas é bem provável que isso já tenha ocorrido em algum lugar. Eu já soube de cães usados como mulas.

“A senhora quer saber de uma verdade? Esqueça o Speek Lee. Ele agora pertence ao crime.”

Comentários

  1. Adorei o texto, Jeff!! Ví minha cã Wicca na sua descrição! Detalhe... A estou doando... companheira demais pra mim, não aguentei!! ...mas enquanto um bom 'receptor' não chega ela vai ficando por aqui...rs...

    Grande abraço!

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  2. Olá,

    Adorei o post.
    Os cachorros são mais leais que um bom Whisky e nunca lhe faltam quando precisamos.

    Beijos e obrigada por sempre passar no meu blog.

    http://raquelconsorte.blogspot.com.br/

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  3. Bom dia! Adorei a história! Acho que o cão não foi sequestrado; ele apenas sentiu o gosto da liberdade sem aquela corrente amarrada ao arame, e é feliz, sendo apenas um vira-lata sem nome.

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  4. Muito boa prosa, e seu bichinho ja esta famoso!!!
    Mas quando adotamos um animal de estimação, certo é que fará parte de nossa famila...e se ele se foi, com certeza o carinho de fora foi maior que o seu...
    Mas outros virão...e que Deus te abençoe

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  5. Jeferson,
    Obrigada por seu comentário em meu blog! A satisfação foi dupla: inicialmente, pelo comentário e, em seguida, pela surpresa agradável de encontrar literatura de alto nível no seu blog que, agora, estou seguindo.
    Abraços!
    Cláudia.

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  6. Olá

    O Speek Lee com certeza encontrou um lugar melhor.

    Boa Sorte.

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  7. Nosso bom e velho amigo sempre rendendo boas histórias.
    Ótimo texto.
    Abraços!

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  8. Encantadora a história do Speek Lee. Seu texto, além de bem escrito, é poeticamente envolvente. Obrigada pela classe com que escreve. Seu blog é excelente!!!

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  9. Gostei muito da amneira como você escreve! Espero que o Speeke Lee tenha encontrado um lar melhor ;)

    Passando para desejar um ótimo dia!
    Liz<3
    The Red Lil' Shoes Blog
    http://theredlilshoes.blogspot.com.br/

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  10. Que blog interessantíssimo, seus textos são incríveis, e tomara que o Speek Lee encontre um lugar melhor pra ele. Abs e obrigada pela visita
    http://odeiosercomum.blogspot.com

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  11. Olá, excelente a forma como você escreveu sobre o Speek Lee. Vale a pena investigar o paradeiro do inesquecível cão.

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  12. Speek me lembra muitos meninos que são levados para o tráfico e tem uma vida melhor que a que teve anteriormente, embora curta e cheia de risco...mazelas do poder paralelo diriam os integrantes desse mundo maldito...uma chance de subir e ser o que a sociedade conceitua como ¨gente¨...se inserir na sociedade de consumo e ter conforto...não importam as perdas geradas pelo custo da oportunidade, é melhor se sentir gente por um momento do que animal a vida toda...

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  13. Achei seu blog maravilhoso Jeferson, você escreve muito bem!
    Muita sorte pra esse cãozinho, com certeza vai encontrar um lar, assim como o meu cãozinho que se chama Nick, adotei ele no CCZ, faz 6 meses e estamos muito felizes.
    Estou seguindo o blog, segue de volta?

    asweetstyle.blogspot.com.br

    Abraços.

    ResponderExcluir
  14. Vc é O MESTRE! Rssss...

    Passa no meu blog! Conto novo, esperando seu deguste:

    http://prosopoetica.blogspot.com.br/2013/04/aquela-blusa.html

    Abraço!!!!

    Guilherme

    ResponderExcluir
  15. Obrigada pela visita ao meu Blog: www.alicepaxpainting.blogspot.com.br e sugiro também o de Turismo: www.mochileirochique.blogspot.com.br
    Achei que você tem alma de escritor... e escreve sem preconceitos ou maniqueísmos... Parabéns!! Vou acompanhar sempre! Abraços!

    ResponderExcluir
  16. Super lindo ele!
    Excelente final de semana ^^
    Beijinhos ;*

    http://bycarolinaa.blogspot.com.br/

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  17. Voce é um Cara muito criativo e inteligente Jeff, bela postagem, abraços!

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  18. Adorei seu blog, me identifiquei cm esse texto, tbm tenho um cachorro e nunca me achei mto apegada, até o dia que ele quase morreu e eu chorei muitooo, só entao notei que nos apegamos a algumas coisas e nem percebemos,

    ótimo texto, parabéns.

    bjs

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  19. Olá Jeff!!!Adorei seu blog,voce é muito criativo.Excelente final de semana.abraços

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  20. Ola Jeferson! Texto muito bom, um pouquinho carregado, mas criativo. Infelizmente o tráfico estará sempre a frente da policia. Outro dia quase atropeleicom o carro um cachorro de rua que atravessou na minha frente tadinho. Deu ate vontade de adotar, mas ele (o cão) me pareceu muito doente, uma pena. Na torcida pra vc se tornar um escritor. Abraço Liliana

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  21. Obrigada pela visita ao meu blog, muito legal as suas histórias, já sou seguidora, abraços!!!
    Patrícia

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  22. Olá Jeff!! Retribuindo sua visita em meu blog, me surpreendi com a qualidade do seu também!! Mas, pelo visto não fui a única! Também acho que não fui a única a começar de cara com o texto do cãozinho (a atração que esses bichanos exercem é poderosa). Ri muito com o final poeticamente dramático! Voltarei sempre! Espero que continue visitando o meu tb! Nem sabia desses premios top blog! Lendo e aprendendo!!!

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  23. Spike Lee baby, rum baby, rum...
    Corra amiguinho, pra bem longe viu!
    Se vc não voltou é porque encontrou um lugar ao sol
    muito melhor.

    Oh Jeff, vc me encanta com suas imaginações viu!

    abs//////////

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  24. Olá Jeferson, agora é minha vez de comentar aqui! rs
    Amo animais, e fiquei realmente, muito feliz em ler o seu post, gostei muito!
    Além disso, você escreve muito bem, parabéns!
    Agora, também sou seguidora aqui... hehe

    Beijos e obrigada por divulgar o post! ^^

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