Dona Centenária
Era uma bela manhã daquele outono. O sol brilhava intensamente com seus raios incidindo sobre a massa de ar fresco, ainda razoavelmente úmido pelo termino recente do verão.
Em casa de Dona Centenária, iniciavam as movimentações do dia. Vovó Centenária, como todos a chamavam, levantou-se junto com os trabalhadores da casa, naquela manhã contava a neta com carinho e muito bom humor. Ela disse que lhe causou certa estranheza dar com sua avó já de pé no corredor tão cedo. Sorrindo então, descontraída, indagou sobre o motivo de a avó ter-se levantado bem mais cedo que de costume: _Vovó, o que faz tão cedo de pé, caiu da cama?
A avó, com um ar grave e a mão direita apoiando a frágil coluna, fiel sustentadora de seu tronco, pré-centenário, delicada e frágil como naturalmente se é nesta fase, respondeu: _Qual tombo de cama, minha filha? Por acaso não ouviu meu sofrimento durante esta noite e a madrugada inteirinha? Sofri como jamais havia sofrido! Foi este o parto mais difícil que tive de todos nove.
A neta naturalmente ficou surpresa e como que por susto, perguntou: _Como assim um parto, vovó?
_Um parto, minha filha, é isso. Não entendeu o quê?
A neta achou graciosa aquela confusão, mas tentou chamar a avó de volta para razão: _Vovó, a senhora tem 96 anos, como teria um bebê?
Olhando firmemente para a neta a anciã, com muita autoridade, respondeu, em tom de exortação: _Ora, menina! Se Deus deu um filho a você, uma pecadora, por que não haveria de dar um filho a mim?
A neta sentiu o gosto do humor invadir seu espírito, e contendo o riso decidiu investigar mais um pouco aquela fabulosa história: _E o bebê, vovó? Onde está?
Dona Centenária não estava mesmo para brincadeiras. E com muita seriedade disse que “retornara ao Pai”. Teria o bebê saído pela janela com suas asinhas; era um anjo e, sendo assim, não competia a ela a criação do recém-nascido, o que aceitara com grande resignação: “Pela fé”; disse a anciã.
A neta, estupefata, ouvia tudo. Permaneceu imóvel diante da anciã, que, já sem paciência, fora tomando a iniciativa para as providências de seu “resguardo”. Olhando a neta nos olhos, com a mão direita apoiando o delgado dorso, e a esquerda diante sua guarda, foi dando as orientações pausadamente: _Quero que me prepare um banho de bacia, pois não posso molhar os cabelos nem as costas. E mande alguém ir atrás de uma erva, aquela boa para resguardo.
A neta decidiu não contrariar a anciã e perguntou, até com certa curiosidade natural: _Qual erva boa para resguardo vovó?
_”Artimijo” minha filha, “artimijo”. Vá logo e peça a sua mãe que me prepare uma queimada de “artimijo”, com água ardente. Ande logo, menina; preciso me recuperar.
A neta deu conselho para que a avó permanecesse em seu quarto, pois ela iria então tomar todas providências ordenadas. A anciã concordou, porém recomendou muita pressa.
A neta já não sorria mais, pois de todas fantasias que já tinha visto a vovó criar, nada era tão extravagante quanto esta última. Dona Centenária tinha mesmo uns devaneios, uns esquecimentos. Tudo desde que sofrera uma queda ao solo com uma contusão de crânio, mas eram pequenos delírios, coisas que logo abandonava mediante a argumentação razoável da família, que reagia a tudo com muita paciência e bom humor. No entanto, desta vez, a neta teve pressa em comunicar o fato a sua mãe, que era a filha do meio de Dona Centenária. Dona Ermelinda ouviu tudo sem espanto, desfrutando muito a parte cômica da situação. Mas, ao ser levada diante de sua mãe, fora tomada por preocupação. Temia que a mãe não mais retornasse ao seu estado consciente. Mãe e filha decidiram então consultar o médico da família, a respeito da vovó. Este, não se contendo diante a narrativa hilária, com muito custo para se refazer do riso, se recompôs e, disse ser algo normal para a atual condição da anciã, que em pouco tempo ela se esqueceria de toda história, e retornaria a seu estado anterior. Aconselhou ainda que o melhor seria concordar, e que em caso de piora, poderiam procurá-lo. Porém, não enxergava motivo para alarde: _Paciência, minhas amigas. E sorrindo despediu mãe e filha à porta do consultório.
Retornaram então para casa onde haviam deixado a idosa aos cuidados de um bisneto. Encontraram-na na cama. Foram até a anciã e indagaram se estava tudo bem. Vovó respondeu que sim e acrescentou: _Mas que demora em arranjar uma queimada de “artimijo”! Que coisa! Tudo é muito “custoso” para vocês, oras!
Filha e neta pediram um pouco mais de paciência, pois alguém já vinha chegando com a erva, e conduziram a senhora para o banho. Fizeram conforme rezam todos cuidados do resguardo. Vovó ficava a maior parte do tempo no quarto, deitada. Como alimento, aceitava canja de galinha e mais nada. Passaram vários dias nesses cuidados do resguardo de Dona Centenária. Ao término de duas semanas, prazo prévio aos quarenta dias de um resguardo, vovó se levantara bem cedo da cama. A neta a encontrara como na ocasião primeira do fato, no corredor que leva do quarto à copa, e a saudara com o entusiasmo do costume: _Bom dia vovó!
_Bom dia, minha filha!
_Como está passando esta manhã de resguardo?
_Resguardo! Qual resguardo, menina?
A neta olhou com espanto e disse que se referia ao resguardo da anciã. Esta sorriu com certo ar de escárnio e, como se estivesse diante de uma brincalhona das maiores, disse: _Que isso menina, que idéia é essa, que absurdo! Por acaso acha que sua avó é Sara?
Dona Centenária continuou os dias, como se nunca tivesse existido tal resguardo. E sua consciência era algo intermitente. E consciência plena aos 96 anos, como todos sabem, é algo totalmente facultável. Como disse sua neta: _O bom é ter vovó em casa!
"Este conto foi publicado na imprensa no dia 15.05.09"
Era uma bela manhã daquele outono. O sol brilhava intensamente com seus raios incidindo sobre a massa de ar fresco, ainda razoavelmente úmido pelo termino recente do verão.
Em casa de Dona Centenária, iniciavam as movimentações do dia. Vovó Centenária, como todos a chamavam, levantou-se junto com os trabalhadores da casa, naquela manhã contava a neta com carinho e muito bom humor. Ela disse que lhe causou certa estranheza dar com sua avó já de pé no corredor tão cedo. Sorrindo então, descontraída, indagou sobre o motivo de a avó ter-se levantado bem mais cedo que de costume: _Vovó, o que faz tão cedo de pé, caiu da cama?
A avó, com um ar grave e a mão direita apoiando a frágil coluna, fiel sustentadora de seu tronco, pré-centenário, delicada e frágil como naturalmente se é nesta fase, respondeu: _Qual tombo de cama, minha filha? Por acaso não ouviu meu sofrimento durante esta noite e a madrugada inteirinha? Sofri como jamais havia sofrido! Foi este o parto mais difícil que tive de todos nove.
A neta naturalmente ficou surpresa e como que por susto, perguntou: _Como assim um parto, vovó?
_Um parto, minha filha, é isso. Não entendeu o quê?
A neta achou graciosa aquela confusão, mas tentou chamar a avó de volta para razão: _Vovó, a senhora tem 96 anos, como teria um bebê?
Olhando firmemente para a neta a anciã, com muita autoridade, respondeu, em tom de exortação: _Ora, menina! Se Deus deu um filho a você, uma pecadora, por que não haveria de dar um filho a mim?
A neta sentiu o gosto do humor invadir seu espírito, e contendo o riso decidiu investigar mais um pouco aquela fabulosa história: _E o bebê, vovó? Onde está?
Dona Centenária não estava mesmo para brincadeiras. E com muita seriedade disse que “retornara ao Pai”. Teria o bebê saído pela janela com suas asinhas; era um anjo e, sendo assim, não competia a ela a criação do recém-nascido, o que aceitara com grande resignação: “Pela fé”; disse a anciã.
A neta, estupefata, ouvia tudo. Permaneceu imóvel diante da anciã, que, já sem paciência, fora tomando a iniciativa para as providências de seu “resguardo”. Olhando a neta nos olhos, com a mão direita apoiando o delgado dorso, e a esquerda diante sua guarda, foi dando as orientações pausadamente: _Quero que me prepare um banho de bacia, pois não posso molhar os cabelos nem as costas. E mande alguém ir atrás de uma erva, aquela boa para resguardo.
A neta decidiu não contrariar a anciã e perguntou, até com certa curiosidade natural: _Qual erva boa para resguardo vovó?
_”Artimijo” minha filha, “artimijo”. Vá logo e peça a sua mãe que me prepare uma queimada de “artimijo”, com água ardente. Ande logo, menina; preciso me recuperar.
A neta deu conselho para que a avó permanecesse em seu quarto, pois ela iria então tomar todas providências ordenadas. A anciã concordou, porém recomendou muita pressa.
A neta já não sorria mais, pois de todas fantasias que já tinha visto a vovó criar, nada era tão extravagante quanto esta última. Dona Centenária tinha mesmo uns devaneios, uns esquecimentos. Tudo desde que sofrera uma queda ao solo com uma contusão de crânio, mas eram pequenos delírios, coisas que logo abandonava mediante a argumentação razoável da família, que reagia a tudo com muita paciência e bom humor. No entanto, desta vez, a neta teve pressa em comunicar o fato a sua mãe, que era a filha do meio de Dona Centenária. Dona Ermelinda ouviu tudo sem espanto, desfrutando muito a parte cômica da situação. Mas, ao ser levada diante de sua mãe, fora tomada por preocupação. Temia que a mãe não mais retornasse ao seu estado consciente. Mãe e filha decidiram então consultar o médico da família, a respeito da vovó. Este, não se contendo diante a narrativa hilária, com muito custo para se refazer do riso, se recompôs e, disse ser algo normal para a atual condição da anciã, que em pouco tempo ela se esqueceria de toda história, e retornaria a seu estado anterior. Aconselhou ainda que o melhor seria concordar, e que em caso de piora, poderiam procurá-lo. Porém, não enxergava motivo para alarde: _Paciência, minhas amigas. E sorrindo despediu mãe e filha à porta do consultório.
Retornaram então para casa onde haviam deixado a idosa aos cuidados de um bisneto. Encontraram-na na cama. Foram até a anciã e indagaram se estava tudo bem. Vovó respondeu que sim e acrescentou: _Mas que demora em arranjar uma queimada de “artimijo”! Que coisa! Tudo é muito “custoso” para vocês, oras!
Filha e neta pediram um pouco mais de paciência, pois alguém já vinha chegando com a erva, e conduziram a senhora para o banho. Fizeram conforme rezam todos cuidados do resguardo. Vovó ficava a maior parte do tempo no quarto, deitada. Como alimento, aceitava canja de galinha e mais nada. Passaram vários dias nesses cuidados do resguardo de Dona Centenária. Ao término de duas semanas, prazo prévio aos quarenta dias de um resguardo, vovó se levantara bem cedo da cama. A neta a encontrara como na ocasião primeira do fato, no corredor que leva do quarto à copa, e a saudara com o entusiasmo do costume: _Bom dia vovó!
_Bom dia, minha filha!
_Como está passando esta manhã de resguardo?
_Resguardo! Qual resguardo, menina?
A neta olhou com espanto e disse que se referia ao resguardo da anciã. Esta sorriu com certo ar de escárnio e, como se estivesse diante de uma brincalhona das maiores, disse: _Que isso menina, que idéia é essa, que absurdo! Por acaso acha que sua avó é Sara?
Dona Centenária continuou os dias, como se nunca tivesse existido tal resguardo. E sua consciência era algo intermitente. E consciência plena aos 96 anos, como todos sabem, é algo totalmente facultável. Como disse sua neta: _O bom é ter vovó em casa!
"Este conto foi publicado na imprensa no dia 15.05.09"
Uff !!!consegui chegar na D. Centenária como você pediu, quase me acabei pois fui fuçando...e lendo, fuçando...e lendo.
ResponderExcluirPassei por todas as postagens, e querendo ficar em cada uma pois me prendia.
Foi uma epopéia literária, rsrs.
Ela também certamente tinha parentesco com nossa D.Cacilda e consequentemente com você, rsrs.
Olha digo que "bom é ter vovó em casa".
Amei.
Mudando de assunto:Em algum lugar aqui, postagens sobre visitar blogs, li que quando vai até um seguidor seu e entra em seu blog que geralmente são atraidos por afinidades de assuntos ou propostas.....pensei o que sempre penso!.
Jesus, sou total e restrita sem personalidade.
Sigo os poetas e nada sei escrever.
Sigo culinaristas, e não sou cozinheira ( mais ou menos).
Sigo jornalistas, e mal sei ler.
Enfim , me pergunto quem sou eu então, será que sou volúvel, pois gosto de tantas coisas, mas nada sei profundamente.
Só um desabafo, pois isso vem me corroendo ...
Beijo Jefh, amei passar tato tempo com você.
Fátima, li atento ao seu comentário. Pensei, pois era algo para responder de forma clara. E agora respondo: eu também sigo várias pessoas, mas a maneira que escolhi de navegar foge um pouco desta ferramenta, que é útil, porém não define as relações. De certa forma eu sigo a todos que se comunicam comigo, pois leio os comentários e as postagens dos comentaristas. Assim eu sigo o fenômeno blogosfera, e a cada dia algo novo me chama a atenção; desde um layoute, até uma foto, e passando por um texto de perfil, por uma postagem... sigo tudo e fico muito, mas muito feliz quando alguém se põe em meu quadro de seguidores, me sinto como se tivesse sido aprovado por uma pessoa amiga, até por que jamais pedi para alguém me seguir, mas sim para me ler.
ResponderExcluirÉ isso. Espero que sirva de consideração para quando for analisar a questão do seu eclético “seguimento”. (sorrio).
Foi um imenso prazer lhe receber da maneira tão agradável como veio. As senhoras nos sejam as professoras na vida, pois elas possuem toda sabedoria. Viva Cora, Obrigado pela oportunidade de falar.
Um grande abraço e um ótimo final de semana, Fátima!
Dona Centenária é realmente uma figura.
ResponderExcluirMinha bisa morreu com seus noventa e alguns, lúcida e saudosa de sua terra.
^^
Saudades, boas imagens e narrativa.