Pular para o conteúdo principal

Cartas a Tás (5 de 60)




Ituverava, 30 de Maio de 2009.


Que Japão que nada; pensava esta manhã. Deveria haver alguma razão de força maior para Tás não visitar meu blog. Em minha mente justificava-o por não ter vindo comentar minhas cartas. Foi então que me deparei com sua figura saindo da casa de Tia Neguinha, parecia mesmo ele. Montava em seu belo jeep prata, e quando me viu passar ao lado, carregando meus humildes pães, não fez mais que um aceno de cabeça; e até isso parecia lhe custar muito. Hoje me sinto humilhado por alguém que fora mais que um irmão para mim nos campos, praças e escolas dessa Ituverava do passado.
Outrora foste mais humilde amigo! O que houve? Porventura enriqueceste a tal ponto de esquecer quem lhe salvou de uma tunda, quando roubou as pêras da Chácara Cartago? Eu lhe ajudei, com muito esforço, a consumir com todo fruto do furto, de modo que só não foste pego por seu pai, que teria certamente lhe arrancado o couro inteiro do lombo, por termos devorado muito contragosto uma a uma daquelas pêras, deixando nada pra tornar verossímil a acusação do dono da pereira, que era na verdade um bom homem, idoso, e cego. Sustentei também que não passava de injúria aquela acusação, e ainda atentei contra a reputação do acusador, dizendo que era ele sim um ladrão, pois trapaceava no carteado e na rinha de galos. É amigo, mas não tem nada. Deves-me, na verdade, nem atenção!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ARMELAU – O MESTRE TAXIDERMISTA BRANDON

Brandon, escriturário e mestre do ofício da taxidermia, um homem dotado de extrema magreza e aspecto frágil, o qual naturalmente compensava com a cara de ódio como se desse ao mundo o recado de sua real ferocidade, era todo ele uma imensa contradição entre a delgada solidez física e a subjetividade da personalidade inflada. A despeito de sua aparente fragilidade, o homem cria-se uma fera e tentava convencer todos à sua volta do quanto nada significava aquela aparência. Aos finais de semana, ocupava-se em dar trato aos bichos mortos e passear com seu poodle pelo bairro em atitude vigilante. Mantinha também na rede social um grupo no qual se compartilhava toda e qualquer presença e ou atitude suspeita nas imediações. Certa vez, quando Armelau atravessava o portão de sua morada para sair em uma caminhada, o poodle de Brandon invadiu sua garagem. Antes mesmo que o sonâmbulo voltasse o rosto para o interior da área, a fim de ver aonde ia o pequeno invasor, Brandon, sem pedir licença, inv...

É Primavera

Era uma manhã de setembro quando o velho Alincourt chegou diante do belo lago de minha cidade, estacou sobre um terreno baldio sito à margem direita, ergueu ao alto os dois braços com ambos os punhos cerrados e vibrou de modo indescritível. No punho esquerdo o velho trouxe uma porção de terra em pó, poeira formada por noventa dias de estiagem. Ao abrir aquela mão, os vigorosos ventos de setembro levaram consigo a terra, que se desprendia e esvaía pelos ares, formando uma fina nuvem de poeira vermelha a andar no ar. O céu tornara-se vermelho, assim como a própria terra do lugar. Da mesma mão desprenderam-se folhas secas. Incontáveis folhas em tonalidades marrons, beges, amarelas. Um enorme urubu, atraído por um odor propagado pelo vento, passou a oferecer uma sombra circular sobre a cabeça do velho. Após a primeira ave, vieram outras da mesma espécie. Em pouco tempo eram seis, vinte e duas, trinta e cinco, cinqüenta e uma, mais de cento e três. Os ventos anunciaram uma carcaça canina...

O Sr. e o Dr.

Ao ser levado à presença daquele Sr de seus maturados 84 anos, estava na verdade indo rever um bom pedaço de minha infância. Afinal, aquele homem de baixa estatura, tórax roliço e finas pernas de passarinho era figura muito frequente nas ruas mais movimentadas de minha terra, há uns 20 anos. Vestido com um jaleco branco sentava com boa postura em sua “motoquinha”, percorria toda cidade com seu jeito lépido. Mas agora ele se encontrava muitos anos à frente daqueles dias; e já não mais conservara sua autonomia para o “ir e vir” a toda parte. Pior ainda, naquele momento sofria com a recuperação de uma fratura no fêmur, ocorrida após uma queda dentro de sua própria casa. _Quão dura é a realidade do ancião que de andar dentro do próprio lar, pode quebrar-se ao chão, isso quando não se quebra de pé, sem mais nem menos, indo apenas posteriormente ao solo, ao que chamam de fratura espontânea. Mas retornemos ao nosso “continho”. Dia após dia, sessão após sessão, meu novo amigo ancião, recuperav...