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Mostrando postagens de 2014

REVEILLON

Bala que partiu não tem volta. E se ela vai de encontro ao leito venoso do rio da vida que corre rumo ao fim, ai ai ai... Pode imediatamente dar início aos preparativos para a grande convenção final. Compre flores, muitas flores. Se possível, uma coroa com alguns dizeres genéricos bem bonitinhos, sensíveis, comoventes. Peça a um poeta para elaborar um texto bem tocante no sentido da compreensão das almas mais sensíveis. E se não conhecer nenhum poeta disponível, que horror!, mesmo que amador, deixe que o pessoal do marketing se encarregará do conteúdo, eles sempre sabem o que o povo gosta de ler de modo geral, amplo e irrestrito.  Já decidiu quem é que levará o seu esquife à mansão dos mortos? Veja bem, melhor que seja gente forte e saudável. Já teve infeliz que fez a escolha errada e acabou caindo na própria rua da cova, ao pé do sepulcral. Um vexame total para os amigos, não os tem, sim, mas tem parente, não importa que sejam poucos os tais, parentes e familiares: mãe e irmã,

ARMELAU – HELLHAISER E OS SETE EURICOS

Naquela manhã chuvosa, as horas não passavam no relógio de parede posto diante da mesa de Armelau, à meia altura. O ponteiro dos segundos era vermelho e o funcionário, dominado por tédio e apatia, achou de acompanhar a passagem do tempo com os olhos fixos no movimento daquela estreita haste hipnótica até completar a hora para o almoço. Logo perdeu de vista o fundo branco do aparelho e viu a cor escarlate tecer uma fina película opaca, algo feito uma névoa insinuante, que se expandia do centro para as extremidades do objeto e aos poucos tomava a forma de um furo pregueado na parede diante o funcionário bocejante. Armelau ouviu passos ecoados do corredor. Ajeitou sua postura na cadeira tratando de voltar os olhos imediatamente para a tela do computador, e deitou a mão sobre o mouse, e fingiu ler algo atentamente para não ser surpreendido por algum superior em pleno ócio no ofício. Era Edmundo Hellraiser, o encarregado de setor, que na verdade não sabia ser Hellraiser, pois

NORMANDO, O PARANORMAL

NORMANDO, O PARANORMAL Para Normando, o mundo das coisas visíveis era simplesmente o esconderijo das coisas invisíveis. Numa noite tumultuosa e tempestiva, uma em que os ventos balouçavam furiosamente as janelas e deitavam as copas das velhas árvores quebrando galhos e guinchando assovios infernalmente agudos, Normando acordou ao sentir um repelão no pé esquerdo, que pendia para fora dos limites do colchão durante a agitação causada por um horrível pesadelo. Levemente angustiado, Normando sentou-se à beira do leito, olhou no relógio de cabeceira, que marcava 03h33min, sentiu o corpo todo dorido e ainda com a impressão de ossudas e nodosas garras em torno de seu tornozelo, ainda meio besta sob a sedação do sono, sentou-se à beira da cama e procurou por suas pantufas tateando com as plantas dos pés. Primeiro, na lateral da mesma por sobre o tapete branco encardido de tricô, depois, embaixo da mesma. As pantufas haviam desaparecido mais uma vez. Lamentou o fato recorre

QUEM TEM TATUAGEM É SUSPEITO DE ARRUAÇA E LIBERTINAGENS

Um parafuso saindo de um casulo, como se fosse um bicho da seda, porém não. Um parafuso. Sim. A criatura metamorfoseada sobre a escápula do rapaz era a peça usada para prender partes em partes e nada tinha da sutileza de uma transformação biológica. Uma das tatuagens mais enigmáticas que já avistei. O leitor que por acaso vá correndo os olhos descontraídos por sua linha do tempo e se depare com meu título acima certamente será tomado dos pés à cabeça por um brusco sobressalto, um repelão, um solavanco. Afinal, quem na atualidade é capaz de ignorar que a tatuagem deixou de ser um estigma dos tempos passados para passar à modinha da ocasião? Atualmente, conforme já disse em outro texto, quem não possui nenhuma tatuagem é que é diferente, por assim dizer. Mas a coisa não funciona bem assim em todos os ermos situados abaixo da linha do equador. Há ainda os nascidos pouco antes ou pouco depois da segunda metade do século que expirou e que fazem questão de evitar papo com pessoas qu

CASO SEJA ELEITO

Parecia o anúncio de um grande espetáculo circense, mas não era. Um cordão composto por carros estampados com legendas, cores e rostos sorridentes. Como sorriem esses homens! A vida é bela, Benigni! Carros de som estrondam o cancioneiro da moda com paródias que superam o horror do mau gosto das canções originais de apenas um refrão e uma onomatopéia. Caminhões e caminhonetes densamente tripulados desfilam em um contínuo teste de paciência dos amortecedores. Pessoas indo a pé, compondo o cortejo, empunham bandeiras com cores uniformes, trajam camisetas impressas com os mesmos rostos sorridentes estampados nos carros e nas bandeiras. O sol está ardente e a principal avenida da cidade repleta pelas gentes. Transeuntes atordoados e, ao mesmo tempo, curiosos, bem como costuma ser comum nos ermos mais pacatos em circunstâncias normais. O ir e vir de um lado a outro pelas calçadas do comércio do centro da cidade é constante. A turba tumultuosa chama a atenção pelo alarido que impõe

CAFÉ, MAGREZA E SUSPEITAS

Agora estou atrasado. Estaria adiantado, não fosse o ladrão ter aparecido. Entraria no banho vinte minutos mais cedo e, por conseguinte, chegaria também vinte minutos antes do horário ao trabalho, o que seria ótimo para organizar algumas pendências. Mas então o telefone tocou. Atendi. Era Adélia. Dizia que havia um carro prata, muito parecido com o nosso, da mesma marca, porém doutro modelo, estacionado diante de nossa casa e com um sujeito magro e muito esquisito ao volante. Bem, minha família acabara de deixar nossa casa em nosso carro e retirou o veículo da garagem passando por de trás do veículo suspeito estacionado à entrada. Atualmente não mora ninguém na casa da frente. A casa ao lado, a da esquina, faz frente pra rua perpendicular à nossa. As outras casas próximas não são de receber tipos estranhos, ainda mais um sujeito magro que aguarde dentro do carro antes das sete horas da manhã de uma quarta feira útil. No interior da casa, eu me agito. Os pensamentos acelera

A CAMINHO DE CAFARNAUM

A ESTALAGEM  Era uma tarde quente e com um sol de estorricar qualquer cristão desprovido de abrigo sombreado. Lavado em suor, o viajante avistou uma estalagem à beira do caminho e imediatamente rumou para lá. Ao adentrar o estabelecimento, encontrou o estalajadeiro por de trás do balcão longo, alto e espesso, em mogno, fazendo uma refeição com o prato na palma da mão direita e um garfo tortamente empunhado com a esquerda. Era um homem robusto o estalajadeiro, ruivo e dotado de sobrancelhas densas e furiosos olhos verdes. “Preciso de um aposento, senhor. Estou na estrada há dois dias e careço demais de um bom banho e lençóis limpos sobre uma cama fresca, por favor.” “O senhor é paulista?” “Sim.” “Aceita linguiça?” “Não, obrigado. Mas se o senhor tiver um aposento, ficarei muito grato. Preciso de um banho, e é urgente!” “Elga, leve este homem ao 13. Tá limpo lá, menina? O senhor não tem mais bagagens, além dessa mochila? Estranho isso! Tá indo pra onde?” “Cafarnaum. Pa

A VOLTA DO GRANDE CIRCO NONSENSE - AMÁCIO MAZZAROPI

AMÁCIO MAZZAROPI No rosto do homem, a inexpressão dominava suas feições limitadas, fixas e absolutas e um tom parvo se impunha a tudo que o interpelava. Mas o timbre de sua voz contradizia de certa forma a ausência de expressão e brevidade de comunicação. Olhava as pessoas em sua volta, retribuía ocasionalmente algum cumprimento formal, respondia alguma pergunta simples, hora através de um breve sim e outrora através de um breve não. Mas tanto o advérbio concordante como o discordante eram ambos proferidos firme e secamente. Definiam perfeitamente a vontade natural do homem. Cabia tão somente aos seus cuidadores acatar ou desacatar seu desejo manifesto.   E era justamente nos momentos de tomada de decisão entre fazer a vontade do homem ou descumpri-la que sua cuidadora mor e também esposa merecia um olhar mais curioso. Ela gabava-se o tempo inteiro por cuidar muito bem do homem, pois dizia que ele era um homem bom a vida toda, bom marido, bom pai e por aí ficava. Ele era b

THE SMITHS, O CONTO

OS SMITHS   Toda aquela casa abrigava sombras em suas paredes, em seus cantos mais ocultos, debaixo dos móveis e tapetes, nas frestas das tábuas, nos rodapés, no escorrer dos peitorais e batentes, nos vãos das janelas e das portas, nos ralos, nas tomadas, nas gavetas, nas pessoas. Mais tarde, bem mais tarde, o cenário ficaria conhecido para muito além de Manchester. Algum dia alguém concluiria ser melhor demolir aquele monumento ao horror e o demoliria. Então acabaria de uma vez por todas com o abrigo de sombras e interromperia a morbidez dos curiosos. Todos, naquela casa, sofriam com as loucuras mórbidas e omitidas. Sofriam ativamente, ou passivamente, mas ninguém estava livre das sombras frias e opressoras tomando a tudo e a todos. Ali, na época dos acontecimentos, os dias passavam sem que houvesse oportunidade para que as crianças brincassem ao ar livre e fossem simplesmente pessoas normais, felizes. Eram crianças tristes, tímidas e introspectivas. Quando não na escola, em casa, e