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Mostrando postagens de 2011

O CÍNICO

“Você tá falando sério que nunca ouviu nada sobre Diógenes, a lenda Diógenes, o cínico, o filósofo, o grego? O discípulo de Antístenes, que foi discípulo de Sócrates, não conhece mesmo? Francamente, você é um fisioterapeuta. Um doutor! Ou não é doutor o fisioterapeuta? Então. Doutor fisioterapeuta! Deveria saber, oras. O Tonho! Tonho! É surdo. Por favor, chame aqui aquele safado do Antonio José, o cínico. Rá, Rá, Rá, Rá. Antonio José, o cínico. Esse você conhece? Pois é, chame aquele ordinário que eu quero dá uma mijada e ele consumiu com o meu negócio de mijar. Eu esqueço o nome daquele troço. Papagaio! Isso! Levou o papagaio pra lavar lá fora e até agora não trouxe de volta. Malandro. Aí ele! O Tonho, cadê o papagaio? Então vá logo que eu to apertado! Como eu ia dizendo, Diógenes foi um filósofo grego. Dizem que viveu entre 413 e 323 a.C.. Foi um sujeito interessante até. A filosofia dele, a qual ele seguia, a escola cínica, desprezava tudo quanto era riqueza, conforto, convenção.

ESTADO ANÍMICO

Estou em meu estado anímico. Preciso ter pressa em escrever para que não retorne ao estado puramente animal perdendo assim o ímpeto narrativo. Quero falar de um amigo. E é preciso estar em estado anímico para falar desta alma iluminada. Ele foi, sem a menor dúvida, um dos pacientes mais interessantes que tive até aqui em minha carreira como fisioterapeuta. Era artista plástico e, segundo o próprio, de reconhecimento nacional e, ocasionalmente, internacional. Sua matéria prima era composta por retalhos, madeira e sucatas das mais diversas origens. Debruçava-se por horas sobre aquelas formas sólidas e ali lutava até conseguir dar nova versão ao emaranhado disforme. Costumava dizer que não fazia nada demais e que qualquer esfomeado ou famigerado seria capaz de travar a mesma luta com êxito equivalente, caso fosse o caminho apontado rumo ao que lhe saciaria o apetite. E concluía dizendo que era ele próprio um esfomeado famigerado pela vida. Seus amigos eram todos desajustados pe

NATAL MACABRO

Ainda é Natal [gosto disso]. É com certeza a data que mais gosto no ano. Tenho a sorte e a alegria de estar em família [outra coisa que venero na vida]. Estamos todos bem [isso é mágico]. Divertimo-nos com muita naturalidade [temos apenas o suficiente, e isso nos basta]. Não troco o meu Natal em família por nenhum outro Natal do mundo. Minha alma sorri e canta essa alegria sincera de viver. E não sou um desavisado. Sei que o tempo escoa, o elenco se renova, os seres perecem [sei que os nossos Natais são contados]. Os tenho como verdadeiras jóias [dádivas do Mestre]. Se eu fosse o magnífico Ferreira Gullar, esse seria o momento de puxar alguma memória dos Natais passados e entremear com o Natal presente com elegância, maturidade e ressonância. Não sendo um Gullar, sigo com meu ‘espírito uvas frescas, cerejas, pêssegos maduros, figos em calda, passas e castanhas’. Comi com singular moderação. Bebi apenas o suficiente para não deixar de beijar o lábio de vidro da taça e sorve

O CHEIRO DO DIABO

Bateu no portão, e, enquanto aguardava, tomou um pouco da chuva fina que caía naquela manhã de céu impenetravelmente nublado. Vendo que ninguém vinha atendê-lo, levou a mão à maçaneta e pode perceber que, como sempre, estava aberto o portão. Abriu um pouco. Apenas o suficiente para perceber que estava destrancado. Assim, pressupôs que houvesse gente no interior da casa. Fechou o mesmo logo em seguida, mas houve tempo para vislumbrar pela fresta da abertura o cãozinho, aparentemente esquizofrênico, saltitando eufórico atado ao arame por sua corrente corrediça. Bateu novamente e aguardou. Dessa vez, teve mais sorte. Dona Amélia veio atendê-lo. Pediu para que entrasse e não reparasse por ela não lhe apertar a mão, pois estava com as suas molhadas e ensaboadas. Thor Nelson, que já estava apreensivo por sua entrevista de trabalho, não disfarçou a pressa em ir direto ao ponto. Entrou ultrapassando o som do próprio bom dia que proferiu mais pra dentro de sua boca do que para fora. Dona Amélia

O GALO ERA UM BODE

O galo cantou. Aquele maldito galo deveria sofrer de algum distúrbio do sono. Cantou quando era uma hora. Tornou a cantar quando era uma e vinte e sete. Ele sentiu vontade de matar e comer o bicho. Sempre que o galo cantava após a meia noite, sentia vontade de degolá-lo com as próprias mãos, esgotar-lhe o sangue até a última gota, e comer o bicho ao molho pardo. Não que apreciasse tal iguaria. Na verdade, na verdade, jamais havia provado o prato. Imaginava comer o galo ao molho pardo por lhe parecer um requinte de sofisticada crueldade alimentar-se do bicho embebido em seu próprio sangue. Tinha fome e sede de vingança. Mas o galo era um bode. Sim, o galo era apenas um bode expiatório. Bem como o calor insuportável, o despertar tardio ao meio dia daquele domingo e, principalmente, a possibilidade de acontecer a entrevista de trabalho na manhã que seguiria. Tudo lhe tirava o sono naquela noite e lhe trazia pensamentos tumultuados e inquietantes relacionados aos acontecimentos dos últimos

GIVANILDO CASA GRANDE

Passava a poupa digital da ponta do indicador sobre a televisão para conferir a cor e a textura da poeira quando ouviu o toque da campainha. Olhou pelo olho mágico da porta que dava para a rua. Viu que era Givanildo, o vizinho do lado direito de quem estivesse de frente para sua casa. Aquilo era incomum, nunca se visitaram. Nunca se freqüentaram os vizinhos. Estranhou a presença de Givanildo à sua porta. Mais estranho era perceber que Givanildo era a imagem e a semelhança da finada Dona Neuza, sua mãe. Abriu a porta. Givanildo sorriu um sorriso que abrigava alguma partícula de sarcasmo mal ocultado, talvez propositalmente. O vizinho estendeu a mão para cumprimentar Thor Nelson: “Olá, Thor! Como vai? E seu pai, tem notícia do velho?” Givanildo era o mais velho dos três filhos da finada Dona Neuza. Formou-se em Administração de Empresas e Contabilidade. Possuía uma imobiliária: “Oi, Givanildo. Não... Não tenho notícias de meu pai...” Disse Thor Nelson. “Sabe por que estou aqui? [...] É q

A IMPRENSA SUPREMA

Ao chegar em casa, assim que fechou a porta atrás de si, sentiu a melancólica atmosfera opressora lhe esmagar como se um saco de sessenta quilos de tristeza lhe fosse recolocado sobre sua cabeça. A situação não era tão difícil enquanto estava na rua. Talvez por distrair-se observando o vai e vem das pessoas. O fato é que, ao ver a casa vazia e os habituais cantos costumeiros de seu pai agora desocupados, a poeira sorrateira acumular-se sobre a poltrona verde musgo reclinável, as pilhas de jornais intactos crescerem feito planta nos cantos da sala, um arrependimento liquefeito invadia a chaga aberta na alma após a última discussão que tiveram. A discussão que antecedeu ao sumiço do velho. Parou de pé diante da cozinha, e começou a recordar aquela manhã. Era como se pudesse ver perfeitamente toda a cena: Era hora do café, café fresco e pães à mesa. O velho enxugou as mãos no pano de pratos encardido que trazia sobre o ombro esquerdo e sentou-se e tomou o jornal nas mãos. Vestia o velho r

UMA DO TCHAIKOVSKY

Fazia alguns dias que ajudava o casal. Sempre se despedia prometendo voltar na manhã do dia seguinte. Um dia voltou e não foi atendido. Bateu no portão. Abriu o portão, enfiou a cabeça para dentro do quintal e chamou. Não foi atendido. O cachorro latia, mas não era para ele, o cachorro latia para o lado, como se visse algo se mover em meio a fumaça tóxica de uma fogueira que, pelo cheiro, deveria estar consumindo uns plásticos ou qualquer outra coisa não orgânica. O cachorro se quer o olhava. Era um pequeno vira latas atado a um arame que poderia percorrer em toda sua extensão de três metros, aproximadamente, eu creio. O cão não tinha o menor indício de ferocidade, e mesmo assim era mantido preso, o tempo inteiro. Talvez devesse a isso o fato do cão ser um tanto esquizofrênico. O cão latia sem olhá-lo, ele chamava pela dona da casa, a fumaça tóxica impregnava os ares, ninguém atendia. Decidiu tentar chamar Dona Amélia ao telefone, tinha o número. O telefone chamava até o fim, e nada de

AMÉLIA É QUE ERA MULHER DE VERDADE

Partiu. Partiu para a casa de Dona Amélia. Fazia quase um mês e meio que ia ali todos os dias pela manhã, exceto aos domingos. Bem no início da manhã. Mudava Seu Felipe de lugar e posição. Colocava-o na cadeira de banho e de volta no leito. Vez ou outra, passeava com ele pela calçada na cadeira de rodas. Seu Felipe havia sofrido um derrame e estava acamado e, praticamente, todo paralisado. Era magro feito um fiapo. Possuía pernas, braços e pescoço longos feito gravetos. Tinha um rosto comprido e delgado, e com os traços profundos e secos como entalhes em madeira. Seus cabelos estavam constantemente oleosos e amassados. Eram lisos e de cor escura e, apesar de contar mais de sessenta anos de idade e uma vida inteira desregrada, eram poucos os fios brancos. Falava pouco. Em presença de Dona Amélia, dizia nada. Parecia mudo. Em ausência de Dona Amélia, o pouco que dizia resumia-se em coisas inconclusas, estranhas, descontextualizadas, ininteligíveis, confusas, delirantes, e, por vezes, rev

XONGAS

Sua ausência lhe causava um vazio. Esse vazio era preenchido por saudade e tédio. Muita saudade, e todo o tédio do mundo. Não havia como atravessar àquela rua sem lembrar-se das vezes em que a atravessaram juntos, sorrindo e se resvalando nas mãos, nos antebraços, braços, nos ombros, quadris, coxas, pés, nos troncos, nas faces, nas frontes, nas cabeças, nos cabelos um do outro. Praticamente se embolavam diante do trânsito nervoso, tenso, bem como dos transeuntes apressados de caras amarradas. Naquelas ocasiões, nada importava de fato, senão o amor que os envolvia e os movia na travessia daquela rua, e na travessia de todas as ruas que cruzavam juntos. A química do amor... A química do tédio... A química da saudade... Quem é que nunca provou dessas poções mágicas e transformadoras? Quem? Quem? Ele sentia vontade de escrever. Escrever era a única maneira barata e acessível de espiar aquele tumulto de sentimentos à deriva no marasmo dos sentidos em que vivia seus dias. Mais uma vez pensou

A NIGHT IN TUNISIA

Na véspera do feriado da padroeira, estive em Ribeirão Preto pra realizar exames médicos. Próximo à hora do almoço, já havia feito o exame e estava na rua de um sebo sobre o qual havia visto uma matéria falando a respeito no caderno Ribeirão da Folha de São Paulo de algumas semanas passadas. Achei o sebo diferente de todos que eu já havia visitado, pois ao contrário da maioria, que são sempre escuros e com forte cheiro de poeira, ele é claro e com leve cheiro de poeira. Eu sabia o que queria, digo, sabia razoavelmente o que queria, sabia em sentido genérico. Eu queria um bom livro barato, queria apenas um livro, queria o livro do Reinaldo de Moraes, queria o livro que o tornou conhecido na década de 80; “TANTO FAZ” é o nome do livro. Não tinha. Quando isso acontece dentro de um sebo, de o livro que você procura não constar, você está livre para vagar e divagar por entre as prateleiras. O sebo é um universo paralelo, é uma máquina do tempo. Uma vida inteira não basta para explorar devid

A PEQUENA LOJA

Caminhava, quando, ao passar pela pequena Rua da Ladeira, vi o anúncio fixo ao vidro da portinhola da estreita porta de uma das muitas lojinhas espalhadas entre velhos edifícios e sobrados residenciais e comerciais do bairro que já fora centro comercial em tempos remotos. O anúncio dizia: “CONTRATAMOS!” Em minha cabeça, o peso de três meses de aluguel vencidos, contas e dívidas, cobranças, inadimplência na faculdade, e meu pai desaparecido há quatro meses. Sem sombra de dúvida, o período mais sombrio de toda minha vida. Fato que nunca havia notado aquele comércio. Na adolescência, passava por aquela calçada com freqüência. Mesmo não sendo um grande observador, creio que, ao menos daquela quadra, posso descrever de olhos fechados todos os edifícios ali sitos. Frequentei demais aquela calçada para não o fazer. Como teria me escapado um comércio naquele lugar tão familiar? Por mais acanhado que fosse o negócio, estaria ali há tempos. Tinha um aspecto de velhice consolidada. A estreita par

O NAMORO FOI UM FILME

Ela chegava sempre no horário certo ao trabalho. Não adiantava nem atrasava. Frustrada pelo casamento que resultou em filhos, conflitos, calúnias, vivia uma vida dura, dupla. Se por um lado se realizava em ver os filhos crescerem sob seus cuidados de mãe zelosa e trabalhadora, por outro ficava frustrada por ainda amar o cafajeste que tanto lhe causou danos à vida. De dia era uma trabalhadora mãe exemplar, à noite uma mulher triste e solitária. Era apenas uma menina quando se apaixonou por aquele inútil. Ele veio cheio de mimos, zelos, obséquios, perfumes, sorrisos, camisas de corte social de cores da moda, frases de efeito, sapatos de pelica, carinhos, calças bem ajustadas, afagos, ouro no pescoço, dentes brancos reluzentes, cartola e fraque de Mandrake. Como não se apaixonaria por aquele arsenal sedutor operado por um homem, ainda por cima, mais velho e experiente? Parecia o príncipe loiro dos contos de fadas, mas numa versão ruiva. Entretanto aquilo era apenas o namoro, e namoro é ma

UM DIA COMUM

Tudo pronto. Você pisa na rua e seu papel está sendo desempenhado publicamente. Talvez você não pense assim e ache-se o mesmo dentro ou fora de seu ambiente mais restrito, sua casa, mas é hipocrisia do pensamento afirmar isso, tampouco você é obrigado a refletir sobre essa questão. Pessoas do ramo já refletiram e refletem de mais sobre todas as questões questionáveis. Cidadãos comuns não precisam ser filósofos para conquistar o sustento. Sócrates pensava muito. Dizem que, certa ocasião, em Potidéia, ele teria permanecido imóvel, absorto em seus pensamentos, durante vinte e quatro horas, tudo diante da estupefação dos colegas soldados numa campanha militar. Mas Sócrates, além de soldado dos bons, foi um filosofo dos melhores. Você não é um Sócrates, pode levar sua vida sem se ocupar tanto em pensar, pensar, pensar. Voltando ao assunto, convenhamos: ninguém é o mesmo dentro e fora de seu ambiente doméstico, seu lar. Assumimos um personagem assim que colocamos os pés para fora de casa, e

EU, O TÉCNICO EM INFORMÁTICA, E A FUNKEIRA

Eu estava com um problema em meu computador de mesa. Ele iniciava e, poucos minutos depois, surgia uma mulher na tela dançando funk sobre um fundo verde fluorescente e o aparelho desligava-se de súbito. Eu perdia tudo o que estivesse fazendo. No início isso acontecia a intervalos regulares de trinta minutos, creio. Com o tempo, os intervalos foram se tornando menos espaçados. Logo chegou ao ponto de absurdos três minutos de funcionamento constante. Por fim, era apenas a dançarina funkeira entusiasmada a exibir sua condição física de atleta antes do apagão vindouro. Comentei com um amigo, que me indicou um técnico dizendo que o sujeito era bom e praticava preços justos - ‘preços justos’ é um conceito bem interessante em se tratando de relações comerciais. Tomei o aparelho e fui ao profissional bem recomendado. La chegando, o cara me recebeu muito bem. Atendia em um velho sobrado, onde funcionava sua oficina, loja, lan house e casa. Exibiu seu conhecimento em informática, que parecia amp

LENÇÓIS MOVEDIÇOS BRANCOS DE CETIM

O que não me pertence eu não ofereço a ninguém. Amor dos outros é amor dos outros, é sagrado. Um amor inspirado em um inverno de umidade extremamente baixa é um amor praticamente fadado ao fracasso. É um amor que supostamente não resistirá às primeiras chuvas primaveris. É um amor seco, árido, opaco, sem futuro. Admita. Admita que os versos contidos nas parábolas e elipses do vôo ininterrupto do beija flor cego duram até que seu coração pare de bater, pois o pavor de pousar lhe faz versar até o último pulsar em seu diminuto peito amante da vida. Queira logo um gole do vinho tinto sagrado com o qual o mestre brindava aos seus principais convivas e comensais. Queira em vida, e vida abundante. Queira enquanto o teu querer é capaz de mover montanhas. Não tenho nenhum dragão para enfrentar. Ai de mim assim, sem dragão medieval para enfrentar, sem dragão asiático para mitificar, sem uma Harley Davidson para montar! Não tenho uma rainha para saudar, e isso é melancólico como a cólica seguida

MACONHEIROS DESGRAÇADOS

Não imaginava que o último dia de agosto viria com notícia de morte, tempestade de poeira e chuva, história. Fazia calor logo ao iniciar o dia. Um pouco eu trabalhava. Um pouco eu tentava respirar próximo à janela do quarto abafado pela noite inteira de respirações à porta fechada. “Ta vendo essa grade na janela? Não tinha. Colocaram depois que o ladrão entrou por ela. Ele entrou e fez a festa. A gente tinha ido almoçar fora. O ladrão trepou no muro, pulou, arrombou a janela, entrou aqui no quarto, levou um relógio de parede igual àquele da sala. Você reparou o relógio lá da sala? Pois é. Era igual àquele. O ladrão levou também cordão de ouro, anel, pulseira, brinco. Levou um montão de roupa do meu genro. E ainda deixou a camiseta velha dele. Você acha. Vestiu uma de meu genro e largou a dele aqui. Vê se pode. Aí, depois desse dia, puseram essa grade”. O ladrão ter entrado e feito um limpa era algo de se esperar de um ladrão. Mas o ladrão entrar e trocar de roupa e ainda doar sua

O CASAMENTO DE PAULO CESAR

Depois de tantos incidentes só nos restava acompanharmos o final da cerimônia de casamento de minha irmã em relativa tranquilidade. A consumação dos votos de eterna e cada vez mais breve e fugaz dedicação, fidelidade e lealdade. Padre Berzerk talvez não percebesse, mas transparecia sarcasmo a cada pergunta e resposta. Parecia inconscientemente disposto a preservar e fortalecer sua fama de sacerdote moderno e liberal. Fez questão de alertar aos noivos de que poderiam desistir antes de confirmar o absoluto sim: “Ainda há tempo para desistirem, depois...”. Dizia isso com certa malícia explicita no tom de sua voz e em sua expressão facial. Hans estava visivelmente impaciente. Tinha absoluta pressa e se precipitava nas positivas. Estava muito necessitado de ir ao banheiro eliminar alguns litros do chope acumulado por uma tarde inteira de bebedeira. Sarah estava distante e indiferente. Divertia-se focando com o olhar vagante os rostos dos convidados que estavam em seu campo de vis

O CASAMENTO DE SEU TURÍBIO

Paulo Cesar atravessou a rua e conduziu papai à praça conforme pedi. Posicionou a cadeira de rodas de modo que sentado no banco tivesse o velho de frente para si. Tirou do bolso o iPhone e digitava uma mensagem quando sentiu de súbito forte sonolência e torpor. Mais tarde nos contou que olhava para papai parado ali em sua frente, contudo não se recordava de quem era papai, tampouco de já tê-lo visto antes - soube tempos depois, pela boca de um profissional, que naquele momento Paulo Cesar fora acometido por uma sensação de “jamais vu” seguida por convulsão. Um minuto depois, Paulo Cesar recobrava a consciência. Sujo, ralado e amarrotado, visivelmente constrangido, o rapaz apresentava pequenas escoriações na fronte e na face, no dorso da mão e no antebraço, e tudo apenas do lado direito do corpo. Disse se recordar ter visto pequenos pontos luminosos que começaram a piscar e se fundir à imagem repentinamente e estranhamente desconhecida de papai que agora ele reconhecia perfeitamente

O CASAMENTO DE HANS

Com papai gritando cada vez mais alto e a intervalos menores “Asmodeu!”, incumbi Paulo Cesar de levá-lo para tomar um ar puro no jardim de frente à igreja. Paulo Cesar descia a cadeira de papai pela rampa lateral quando cruzou em diagonal com Sarah, que acabara de descer da clássica limusine preta e se encaminhava rumo à escadaria da catedral. Ela riu do escândalo proporcionado por papai, e ergueu o riso até Paulo César, que, atônito e mais estrábico que o habitual, imediatamente estacou no meio da rampa, e por muito pouco não abandou a cadeira de papai à própria sorte para melhor absorver o impacto da imagem que lhe paralisara (Sarah). Os ombros brancos à mostra, a franja vermelha guardando metade do olhar para a noite nupcial, a outra metade corria furtiva sobre as caras embasbacadas pela suavidade da flor rubra e alva que rompia pelo corredor principal do modesto templo erguido ao estilo gótico a custo de muito esforço dos fiéis. Em momento algum ela procurava por Hans, que era