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INFAUSTA CORRIDA, O CHOQUE

Naquele dia, quase conheci o meu fim grudado à campainha de minha própria casa. Tudo começou quando dobrei à esquina, correndo, sob forte vento e violenta chuva em diagonal, sob clarões titânicos tétricos que acendiam a rua, que já tinha metade de sua claridade por conta da iluminação pública. Um céu sarcástico bradava tempestuoso contra qualquer ser insolente que teimasse em não esconder-se. No caso, o transeunte teimoso era este cronista que vos fala. Mas antes de chegar à esquina, eu corria para sair da avenida onde corro todos os dias. Por grande coincidência, meu pai, que passava de carro pelo local, me viu e ofereceu carona, ao que recusei com um vigoroso gesto ‘Siga em frente, que estou bem!’ que não deixou dúvida de que eu estava resoluto em seguir enfrentando a fúria da natureza por mais duas quadras e meia até chegar em casa por meus próprios passos encharcados. Ele sabe que sou mesmo assim, decidido. Deve me achar meio falto de um parafuso, mas isso não importa. Este para...

INFAUSTA CORRIDA, A QUEDA

Noite de sexta, eu fui correr. Tudo bem, tudo tranquilo - quase ninguém faz isso aqui em minha cidade numa sexta à noite. Os barzinhos ficam lotados e a avenida fica vazia de caminhantes e corredores. Apenas carros passam em número considerável. Em uma das margens do lago, a mais distante da entrada da cidade, pescadores urbanos lá estavam com seus banquinhos, equipamentos, ambições, reflexões e cigarros para compor a cena. Pra não dizer que apenas eu praticava atividade esportiva, havia uma moça caminhante, um casal que também caminhava, um corredor careca pouco ou nada simpático. Passei pelo careca que não deu o menor indício de que retribuiria meu político ‘boa noite!’ - sou desses que cumprimenta a todos. Logo que passei pelo calvo, veio pela frente uma pequena mangueira frondosa cuja copa domina o espaço aéreo sobre a calçada. E havia um caprichoso buraco ali no chão, justamente embaixo da árvore. Confluindo o buraco e o mau olhado do careca, a ponta do meu pé alojou-se na ...

O CÔNCAVO DA AXILA DIREITA DE ROSALMA

Com o braço rente ao tórax e movimentos curtos, ela grafava com grande dificuldade em um bloquinho de notas as palavras que lhe vinham à mente logo abaixo do título que encabeçava a pequena página. Título escolhido intuitivamente, ao acaso, durante uma divagação ocorrida ali mesmo debaixo da goiabeira que deitava galhos e folhas para dentro da varanda da velha casa abandonada e arruinada na qual o pequeno portão aberto e enferrujado permitia o trânsito livre dos desafortunados vagabundos que buscavam abrigar-se dos olhos do povo ou do braseiro do sol ardente da tarde.   ‘EU QUERO UM AMOR’ era o título cabeçalho. E abaixo do título seguiam frases jogadas sem qualquer pontuação de trânsito gramatical, exceto o agigantamento maiúsculo de algumas consoantes iniciais que cumpriam bem a função de falso parágrafo ‘Que fale de amor Que fale de amor com sentimento Que fale de amor Que fale de amor com gravidade Que fale de amor Que fale de amor com comprometimento Que fale de amor Que fa...

BRB - O SONHO DE DOROTÉIA

Dorotéia dormia no mesmo quarto em que dormia Bob/Rock/Blues. Durante a noite, por muitas vezes, Bob/Rock chamava pela senhora. Dizia que queria o urinol. Ela dizia que ele estava de fralda. Ele dizia que aquilo era uma indecência. Ela cedia, mas quando enfim conseguia posicionar o papagaio de modo com que o patrão pudesse aliviar-se, via já ser tarde. Bob/Rock a culpava pela demora, resmungava por algum tempo, xingava de modo que a ofendesse mesmo sem que ela soubesse qual era o real sentido do xingamento proferido ‘criatura modorrenta!’ e, logo em seguida, virava para algum lado e roncava ao ponto de estremecer as paredes do pequeno e abafado vestíbulo. A enfermeira acompanhante, sonolenta, sonâmbula e cambaleante, atendia aos pedidos do exigente patrão enfermo. Noutro momento, o que era bem mais comum, Bob/Rock/Blues acordava dona Dorotéia para pedir-lhe um trago. A família já a havia instruído para que não cedesse aos caprichos do velho ‘mas quem é que aguenta esse homem gri...

BRB - KUDURO, O CÃO

Pela manhã, o sol resplandece evaporando as boêmias gotas remanescentes do sereno noturno. Pessoas vão em seus ires e vires por algo que algum dia não fará todo sentido, ou muito sentido, ou sentido algum. A casa de Bob/Rock/Blues acorda com o despertador do celular do filho, praticamente madrugador, o primeiro a levantar-se. Ele toma café e folheia o jornal antes de partir para o trabalho. Vê Dorotéia chegar abrindo portões e portas com dificuldade devido à bicicleta que trás ao seu lado pelo guidão. Ela tem as chaves. E ela só se sentará para tomar café após ter dado o banho em Bob/Rock e lhe preparado para receber a fisioterapeuta que deveria chegar às sete. O cão Kuduro dorme no corredor. Desperta com Dorotéia abrindo a primeira fechadura, a do portão da rua. Ele não late. E se rosna, é prontamente advertido pelo filho de Bob/Rock, doutor Olavo Passo. Bob/Rock/Blues não gosta de receber ajuda para tudo que faz. É contragosto que aceita Dorotéia lhe conduzir da cama à cadeira de ...

O CHUPA CANAS

‘Não agüento mais este serviço. Preciso arranjar outro. Você não sabe de outro lugar onde estejam precisando de gente pra trabalhar?’ Ela não era bem o tipo que preenchia os padrões dos perfis ao longo do percurso de um emprego. Vivia recentemente empregada, desempregada, e à procura de trabalho. Era o tipo que sempre tem uma sogra para levar à consulta, um filho para levar ao pronto socorro, uma tia para levar à farmácia para tomar uma injeção qualquer, uma mãe agendando uma cirurgia que nunca acontece, ‘diabo de SUS este onde a fila não anda’, ela dizia. Após o primeiro mês, frequentemente faltava ao trabalho e se justificava pelo momento e comportamento da saúde pública no país, a saúde pública calamitosa de seus familiares, os legítimos e bem conhecidos representantes do povo, da nação brasileira. Mas na verdade ela já não estava bem na floricultura. E nada que é pra ser eterno dura para sempre, e então veio a infelicidade no novo emprego. Eram tantas as flores, eram tantos líri...

AGORA OLGA FEZ IOGA

E estando o objeto quase todo regurgitado pra fora da bolsa, exibia detalhes que Mestre Raimundo examinava com imensa atenção e surpresa a cada vez que passava, à passo lento, introspectivo. Seus velhos e bons olhos não alimentavam qualquer dúvida quanto à natureza do objeto exposto. Viu que era uma pequena e delicada peça, não nova, pois não tinha o brilho das novidades. Mas viu também que não era velha, pois não estava desbotada, nem opaca. Verde garrafa saindo de dentro da bolsa que Olga depositara ali sobre o banco, descuidada, juntamente com sua velha blusa de lã cinza. A cada volta, a certeza de Mestre Raimundo gritava e mais revelava a natureza do objeto adereçado ornado de cetim na mesma cor, porém em uma tonalidade mais forte. O objeto misterioso era uma obra fina, rara, uma coisa apropriada somente em ocasiões muito especiais. Mestre Raimundo estava maduro e experiente o suficiente para que o mundo não lhe aterrorizasse com pequenas surpresas. Bem verdade, que nem surpres...