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MACONHEIROS DESGRAÇADOS

Não imaginava que o último dia de agosto viria com notícia de morte, tempestade de poeira e chuva, história. Fazia calor logo ao iniciar o dia. Um pouco eu trabalhava. Um pouco eu tentava respirar próximo à janela do quarto abafado pela noite inteira de respirações à porta fechada. “Ta vendo essa grade na janela? Não tinha. Colocaram depois que o ladrão entrou por ela. Ele entrou e fez a festa. A gente tinha ido almoçar fora. O ladrão trepou no muro, pulou, arrombou a janela, entrou aqui no quarto, levou um relógio de parede igual àquele da sala. Você reparou o relógio lá da sala? Pois é. Era igual àquele. O ladrão levou também cordão de ouro, anel, pulseira, brinco. Levou um montão de roupa do meu genro. E ainda deixou a camiseta velha dele. Você acha. Vestiu uma de meu genro e largou a dele aqui. Vê se pode. Aí, depois desse dia, puseram essa grade”. O ladrão ter entrado e feito um limpa era algo de se esperar de um ladrão. Mas o ladrão entrar e trocar de roupa e ainda doar sua...

O CASAMENTO DE PAULO CESAR

Depois de tantos incidentes só nos restava acompanharmos o final da cerimônia de casamento de minha irmã em relativa tranquilidade. A consumação dos votos de eterna e cada vez mais breve e fugaz dedicação, fidelidade e lealdade. Padre Berzerk talvez não percebesse, mas transparecia sarcasmo a cada pergunta e resposta. Parecia inconscientemente disposto a preservar e fortalecer sua fama de sacerdote moderno e liberal. Fez questão de alertar aos noivos de que poderiam desistir antes de confirmar o absoluto sim: “Ainda há tempo para desistirem, depois...”. Dizia isso com certa malícia explicita no tom de sua voz e em sua expressão facial. Hans estava visivelmente impaciente. Tinha absoluta pressa e se precipitava nas positivas. Estava muito necessitado de ir ao banheiro eliminar alguns litros do chope acumulado por uma tarde inteira de bebedeira. Sarah estava distante e indiferente. Divertia-se focando com o olhar vagante os rostos dos convidados que estavam em seu campo de vis...

O CASAMENTO DE SEU TURÍBIO

Paulo Cesar atravessou a rua e conduziu papai à praça conforme pedi. Posicionou a cadeira de rodas de modo que sentado no banco tivesse o velho de frente para si. Tirou do bolso o iPhone e digitava uma mensagem quando sentiu de súbito forte sonolência e torpor. Mais tarde nos contou que olhava para papai parado ali em sua frente, contudo não se recordava de quem era papai, tampouco de já tê-lo visto antes - soube tempos depois, pela boca de um profissional, que naquele momento Paulo Cesar fora acometido por uma sensação de “jamais vu” seguida por convulsão. Um minuto depois, Paulo Cesar recobrava a consciência. Sujo, ralado e amarrotado, visivelmente constrangido, o rapaz apresentava pequenas escoriações na fronte e na face, no dorso da mão e no antebraço, e tudo apenas do lado direito do corpo. Disse se recordar ter visto pequenos pontos luminosos que começaram a piscar e se fundir à imagem repentinamente e estranhamente desconhecida de papai que agora ele reconhecia perfeitamente...

O CASAMENTO DE HANS

Com papai gritando cada vez mais alto e a intervalos menores “Asmodeu!”, incumbi Paulo Cesar de levá-lo para tomar um ar puro no jardim de frente à igreja. Paulo Cesar descia a cadeira de papai pela rampa lateral quando cruzou em diagonal com Sarah, que acabara de descer da clássica limusine preta e se encaminhava rumo à escadaria da catedral. Ela riu do escândalo proporcionado por papai, e ergueu o riso até Paulo César, que, atônito e mais estrábico que o habitual, imediatamente estacou no meio da rampa, e por muito pouco não abandou a cadeira de papai à própria sorte para melhor absorver o impacto da imagem que lhe paralisara (Sarah). Os ombros brancos à mostra, a franja vermelha guardando metade do olhar para a noite nupcial, a outra metade corria furtiva sobre as caras embasbacadas pela suavidade da flor rubra e alva que rompia pelo corredor principal do modesto templo erguido ao estilo gótico a custo de muito esforço dos fiéis. Em momento algum ela procurava por Hans, que era ...

O CASAMENTO DE SARAH

Chegamos à igreja. E papai, sentado em sua cadeira de rodas, berrou diante dos portais para quem quisesse escutar: “Asmodeu!”. Imediatamente todos se voltaram para trás. Alguns lançaram olhares moderados, de contida curiosidade. Outros foram mais indiscretos, lançaram olhares invasivos, mal educados e depois politizaram à encarada com um sorriso que supostamente revelaria uma admiração ao ato de bravura do velho herói agora encadeirado e louco lutando para adentrar um evento social refinado. Talvez, se soubessem o significado de Asmodeu, sequer teriam permitido nossa entrada para além dos pórticos da bela catedral em estilo gótico. Antes o padre viria correndo de dentro da igreja a fim de exorcizar papai ali mesmo, fora dos umbrais. Asmodeu era a alucinação que papai arranjou desde a antevéspera do casamento de Sarah. Seria a criatura um dos sete príncipes do inferno. Dentre outras coisas, no livro de Tobias, é citado como sendo o assassino dos noivos de Sara, e demônio da luxuria,...

ESQUIZOFRENIA

Falta apenas dez minutos para o meio dia e você já está diante da empresa anotando a quilometragem e à hora para entregar o veículo. Ao olhar para o painel a fim de conferir os números, você percebe vindo em sua direção o mesmo figura da ultima postagem, o cara que pedia dinheiro para completar a soma do valor da lata de leite em pó. Você abaixa os olhos e toma o pequeno papel onde anotará os dados com a certeza de que o camarada virá em sua direção. Mas agora é tudo diferente. Você fez um texto que contava o ocorrido em forma de crônica, e muitas pessoas vieram comentar, cada pessoa trouxe algo, muitas compartilharam experiências parecidas com àquela que narrou. Você está mais atento ao evento que segue. Certamente observará melhor em caso de travamento de contato. O sujeito se aproxima e sorri com a mesma cara cínica e elástica da semana da crônica, duas semanas atrás. Você está com a porta do carro aberta e organiza os objetos para descer e ir ao escritório da empresa. Ele para por ...

UM TROCADO PARA UMA LATA DE LEITE CARO

Um homem sentado diante da entrada da empresa onde você trabalha lhe pede um trocado: _Doutor, tem aí algum trocado pra completar pra eu comprar uma lata de leite em pó do caro? Você não está com dinheiro em cédula; possui cartões, mas dinheiro propriamente não. Então você nega: _Desculpe, mas estou sem nenhum dinheiro aqui. O pedinte obviamente duvida. Sua roupa branca é um símbolo do sucesso social; não é possível que um homem que vista branco sob um pomposo jaleco também branco não traga consigo nenhum mísero trocado pro pedinte malfadado. Contudo é a verdade, creia ou não creia quem pede. Mas e se tivesse um trocado e desse ao jovem aparentemente saudável pedinte, não seria o mesmo que patrocinar a condição depreciativa do jovem? Você continua em seu caminho empresa adentro enquanto o pedinte continua em sua tentativa de sensibilizar algum passante. E se fosse um pouco de atenção que aquele homem estivesse pedindo seria menos depreciativa a sua condição? Quantas pessoas não nos ped...