Pular para o conteúdo principal

Cartas a Tás (56 de 60) Pobre Vincent


Ituverava, 18 de outubro de 2009.
Meu caro quase irmão, como deve ter notado tenho tido certa dificuldade em lhe escrever as últimas cartas da série. Ocorreu que com a exclusão do conto “O Cobrador”, decisão da qual não me arrependo, entrei em numa situação difícil quanto ao fechamento da série. É que tendo chegado a uma carta com uma imagem que, digamos, encerra a série de forma quase mágica, ficou difícil falar de outros assuntos senão de nosso encontro, amigo.
Tenho tido visualizações que, sem dúvida alguma, superam grandemente as minhas expectativas, uma vez que meu propósito sempre fora simplesmente ver-te novamente identificado com as causas comuns a todo ituveravense romântico e de alma encardida.
Ao ver-lhe falar de tantas coisas com especial carinho; das ruas nas quais arrancou a ponta do dedão ao tentar dar a bicuda do século sobre os paralelepípedos; do cine Regina e os filmes de Mazzaropi; seu sincero clamor por uma restauração de nossa querida estação férrea, cuja qual retratei imediatamente após seu discurso. Vi após estas demonstrações de inegável saudosismo e gratidão que meu propósito inicial revelado pela primeira vez na longínqua carta inaugural da série Cartas a Tás (01 de 60; do dia 20 de maio de 2009), finalmente havia sido alcançado, e antes mesmo que eu completasse a série.
Soma-se a isto que terminei a leitura do livro do Vincent que vinha concomitante a escrita da série, cujo nome fora inspirado no título do livro feito das cartas do pintor ao irmão, e para por aí a paródia, salvo esta ou aquela citação breve de texto contido no livro, pois o pintor avança a cada página por um caminho de decadência e descrença, ao contrário do que me ocorreu com minha série que fora algo feliz.
Vincent vendeu supostamente apenas um quadro em vida; uma tela de um vinhedo todo púrpura e amarelo; rechaçou o comentário muito favorável do crítico de arte Albert Aurier, publicado no Mercure de France em janeiro de 1890, por dizer-se avesso a publicidades.
O pintor, infelizmente, terminou em melancolia; e eu termino minha série com imensa alegria, caro amigo, com as orelhas intactas e com diversos projetos para o futuro.
E nas palavras do próprio Vincent que disse quando ainda cria no futuro, “aquele que vive sinceramente e encontra aflições verdadeiras e desilusões, e que jamais se deixa abater por elas, vale mais que os que sempre vão de vento em popa”, finalizo mais esta carta, que muito me aproxima da carta de numero 60, com um cordial aperto de mão.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Sr. e o Dr.

Ao ser levado à presença daquele Sr de seus maturados 84 anos, estava na verdade indo rever um bom pedaço de minha infância. Afinal, aquele homem de baixa estatura, tórax roliço e finas pernas de passarinho era figura muito frequente nas ruas mais movimentadas de minha terra, há uns 20 anos. Vestido com um jaleco branco sentava com boa postura em sua “motoquinha”, percorria toda cidade com seu jeito lépido. Mas agora ele se encontrava muitos anos à frente daqueles dias; e já não mais conservara sua autonomia para o “ir e vir” a toda parte. Pior ainda, naquele momento sofria com a recuperação de uma fratura no fêmur, ocorrida após uma queda dentro de sua própria casa. _Quão dura é a realidade do ancião que de andar dentro do próprio lar, pode quebrar-se ao chão, isso quando não se quebra de pé, sem mais nem menos, indo apenas posteriormente ao solo, ao que chamam de fratura espontânea. Mas retornemos ao nosso “continho”. Dia após dia, sessão após sessão, meu novo amigo ancião, recuperav...

É Primavera

Era uma manhã de setembro quando o velho Alincourt chegou diante do belo lago de minha cidade, estacou sobre um terreno baldio sito à margem direita, ergueu ao alto os dois braços com ambos os punhos cerrados e vibrou de modo indescritível. No punho esquerdo o velho trouxe uma porção de terra em pó, poeira formada por noventa dias de estiagem. Ao abrir aquela mão, os vigorosos ventos de setembro levaram consigo a terra, que se desprendia e esvaía pelos ares, formando uma fina nuvem de poeira vermelha a andar no ar. O céu tornara-se vermelho, assim como a própria terra do lugar. Da mesma mão desprenderam-se folhas secas. Incontáveis folhas em tonalidades marrons, beges, amarelas. Um enorme urubu, atraído por um odor propagado pelo vento, passou a oferecer uma sombra circular sobre a cabeça do velho. Após a primeira ave, vieram outras da mesma espécie. Em pouco tempo eram seis, vinte e duas, trinta e cinco, cinqüenta e uma, mais de cento e três. Os ventos anunciaram uma carcaça canina...

O Diário de Bronson (10 - O Chamado)

_Bronson, o tal Dr. Mendelson ligou para você. Disse para retornar o mais depressa possível. O que esse homem teria para falar de tão urgente? _Não sei, Frida. Na verdade nem imaginava que ele pudesse querer um dia falar comigo. _Você vai ligar? _Claro. Por que eu não ligaria? _Sei lá. É que você voltou tão pra baixo após a última consulta. _Não era uma consulta, era um aconselhamento; e isso não tem nada haver com os meus humores. _Ta bom. Esqueça. Não disse nada. ... _Alô! Dr. Mendelson? ... _Sim, Doutor. Eu posso. Já estou a caminho.... _Onde vai, Bronson? _Vou até a casa do Dr., me parece que sofreu um acidente e, fraturou a perna, precisa falar comigo. _Você agora virou enfermeiro? _Frida, por favor, não comece! _Desculpe, mas... Bronson! Bronson! Bronson havia partido ao encontro de Dr. Mendelson. Em dez minutos já estava diante da casa amarela com fachada de arquitetura mista (antiga/contemporânea). Apertou o interfone e desta vez não ouviu a fria voz de Crisostemo; ao invés des...