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Mostrando postagens de outubro, 2011

XONGAS

Sua ausência lhe causava um vazio. Esse vazio era preenchido por saudade e tédio. Muita saudade, e todo o tédio do mundo. Não havia como atravessar àquela rua sem lembrar-se das vezes em que a atravessaram juntos, sorrindo e se resvalando nas mãos, nos antebraços, braços, nos ombros, quadris, coxas, pés, nos troncos, nas faces, nas frontes, nas cabeças, nos cabelos um do outro. Praticamente se embolavam diante do trânsito nervoso, tenso, bem como dos transeuntes apressados de caras amarradas. Naquelas ocasiões, nada importava de fato, senão o amor que os envolvia e os movia na travessia daquela rua, e na travessia de todas as ruas que cruzavam juntos. A química do amor... A química do tédio... A química da saudade... Quem é que nunca provou dessas poções mágicas e transformadoras? Quem? Quem? Ele sentia vontade de escrever. Escrever era a única maneira barata e acessível de espiar aquele tumulto de sentimentos à deriva no marasmo dos sentidos em que vivia seus dias. Mais uma vez pensou

A NIGHT IN TUNISIA

Na véspera do feriado da padroeira, estive em Ribeirão Preto pra realizar exames médicos. Próximo à hora do almoço, já havia feito o exame e estava na rua de um sebo sobre o qual havia visto uma matéria falando a respeito no caderno Ribeirão da Folha de São Paulo de algumas semanas passadas. Achei o sebo diferente de todos que eu já havia visitado, pois ao contrário da maioria, que são sempre escuros e com forte cheiro de poeira, ele é claro e com leve cheiro de poeira. Eu sabia o que queria, digo, sabia razoavelmente o que queria, sabia em sentido genérico. Eu queria um bom livro barato, queria apenas um livro, queria o livro do Reinaldo de Moraes, queria o livro que o tornou conhecido na década de 80; “TANTO FAZ” é o nome do livro. Não tinha. Quando isso acontece dentro de um sebo, de o livro que você procura não constar, você está livre para vagar e divagar por entre as prateleiras. O sebo é um universo paralelo, é uma máquina do tempo. Uma vida inteira não basta para explorar devid

A PEQUENA LOJA

Caminhava, quando, ao passar pela pequena Rua da Ladeira, vi o anúncio fixo ao vidro da portinhola da estreita porta de uma das muitas lojinhas espalhadas entre velhos edifícios e sobrados residenciais e comerciais do bairro que já fora centro comercial em tempos remotos. O anúncio dizia: “CONTRATAMOS!” Em minha cabeça, o peso de três meses de aluguel vencidos, contas e dívidas, cobranças, inadimplência na faculdade, e meu pai desaparecido há quatro meses. Sem sombra de dúvida, o período mais sombrio de toda minha vida. Fato que nunca havia notado aquele comércio. Na adolescência, passava por aquela calçada com freqüência. Mesmo não sendo um grande observador, creio que, ao menos daquela quadra, posso descrever de olhos fechados todos os edifícios ali sitos. Frequentei demais aquela calçada para não o fazer. Como teria me escapado um comércio naquele lugar tão familiar? Por mais acanhado que fosse o negócio, estaria ali há tempos. Tinha um aspecto de velhice consolidada. A estreita par

O NAMORO FOI UM FILME

Ela chegava sempre no horário certo ao trabalho. Não adiantava nem atrasava. Frustrada pelo casamento que resultou em filhos, conflitos, calúnias, vivia uma vida dura, dupla. Se por um lado se realizava em ver os filhos crescerem sob seus cuidados de mãe zelosa e trabalhadora, por outro ficava frustrada por ainda amar o cafajeste que tanto lhe causou danos à vida. De dia era uma trabalhadora mãe exemplar, à noite uma mulher triste e solitária. Era apenas uma menina quando se apaixonou por aquele inútil. Ele veio cheio de mimos, zelos, obséquios, perfumes, sorrisos, camisas de corte social de cores da moda, frases de efeito, sapatos de pelica, carinhos, calças bem ajustadas, afagos, ouro no pescoço, dentes brancos reluzentes, cartola e fraque de Mandrake. Como não se apaixonaria por aquele arsenal sedutor operado por um homem, ainda por cima, mais velho e experiente? Parecia o príncipe loiro dos contos de fadas, mas numa versão ruiva. Entretanto aquilo era apenas o namoro, e namoro é ma

UM DIA COMUM

Tudo pronto. Você pisa na rua e seu papel está sendo desempenhado publicamente. Talvez você não pense assim e ache-se o mesmo dentro ou fora de seu ambiente mais restrito, sua casa, mas é hipocrisia do pensamento afirmar isso, tampouco você é obrigado a refletir sobre essa questão. Pessoas do ramo já refletiram e refletem de mais sobre todas as questões questionáveis. Cidadãos comuns não precisam ser filósofos para conquistar o sustento. Sócrates pensava muito. Dizem que, certa ocasião, em Potidéia, ele teria permanecido imóvel, absorto em seus pensamentos, durante vinte e quatro horas, tudo diante da estupefação dos colegas soldados numa campanha militar. Mas Sócrates, além de soldado dos bons, foi um filosofo dos melhores. Você não é um Sócrates, pode levar sua vida sem se ocupar tanto em pensar, pensar, pensar. Voltando ao assunto, convenhamos: ninguém é o mesmo dentro e fora de seu ambiente doméstico, seu lar. Assumimos um personagem assim que colocamos os pés para fora de casa, e