tag:blogger.com,1999:blog-48372748822649799962024-03-18T00:47:57.404-07:00Jefh CardosoJeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.comBlogger336125tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-18316661435175134322021-04-18T10:50:00.001-07:002021-04-18T10:50:22.995-07:00SÓ PROSA #01 (PRA TALVEZ VOLTAR)<p style="text-align: left;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhcsday9UrTbMObUFPTjAVjqm5hhoo660rW7aitYsDHhA19Vwxi6BYO5KPP6RkTvhWC425iY5tfDOzggmhMvXPp3ag90aPKrcN4Sj6qzWSDLCTh9Ks9Abmaz-AznMpX1wE5kibVrJLO_fmh/" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="2048" data-original-width="2048" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhcsday9UrTbMObUFPTjAVjqm5hhoo660rW7aitYsDHhA19Vwxi6BYO5KPP6RkTvhWC425iY5tfDOzggmhMvXPp3ag90aPKrcN4Sj6qzWSDLCTh9Ks9Abmaz-AznMpX1wE5kibVrJLO_fmh/w219-h240/image.png" width="219" /></a></div><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><b>SÓ PROSA #01 (PRA TALVEZ VOLTAR)<o:p></o:p></b></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p> </o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">E fez 5 anos sem uma única
atualização de meu blog. Blogs são como plantas, que uma vez sem cuidados,
param de dar frutos, murcham, secam e morrem, ou não, a maioria sim. Mas ainda
acredito que muitos blogs serão encontrados pelos literatos do futuro e
esmiuçados e aproveitados por suas singularidades em suas capacidades de
relatar os tempos e as visões. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">É tanta informação e tantas
mídias e tantas redes sociais e tantas notícias... O mundo vai em turbilhão e
aos rodopios, de surriada. É impossível acompanhar tanta evolução ao passo de
todos os fatos e acontecimentos seculares.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Aconteceu algo que eu há algum
tempo já suspeitava que aconteceria: a vida em self-service. Cada qual busca a
informação que quer, o assunto, o entretenimento, a opinião, o programa e a
programação, o filme, a música, o clipe e as pessoas, a visão de vida e de
planeta. Mas pensando um pouco mais e melhor, será que não foi sempre assim? <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Não sei se e nem como o meu blog
eventualmente será visto em outros tempos, mas creio que certamente postei
coisas engraçadas e interessantes nele e até algum retrato de vida.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">E o que fez com que eu parasse de
escrever foi a própria vida, que me chamou para um outro projeto, o qual chamei
de Projeto Equilíbrio e assim tenho vivido. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Aí vieram tantas coisas que tenho
o registro e preferi não publicar que já nem sei direito a conta das crônicas e
contos ocorridos. Porém tamanho foi o meu silêncio que começaram a me dar vozes
que não são minhas e atribuir frases ao meu nome que jamais disse ou escrevi. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Não vejo a vida como um mar de
rosas sob um céu de estrelas e nem como um mar de ambição sob um céu de
intrigas. Quem quer ser mesquinho que se amesquinhe, quem quer ser poesia que
se versifique. Creio que uma existência seja algo muito breve para nos atermos
somente às misérias da alma. Velei-me, meu bom Deus! O cosmo é mais!!! <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Durante uma pandemia, tudo é
muito incerto, controverso e sombrio. E é sob esse signo que voltar eu decido.
Eis-me aqui, querido blog e queridos amigos! O rei está nu novamente e este
modesto escriba de volta à escrita.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Sócrates disse e certamente diria
novamente: “mais difícil que evitar a morte é evitar o mal, porque ele corre
mais depressa que a morte”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p> </o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p> </o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p> </o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p> </o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p> </o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">A arte imita a vida, a vida imita
a arte, a arte não mata a fome, mas uma fome morta não é o suficiente para
alimentar uma vida viva. (JefhCardoso)<o:p></o:p></p><br /><p></p>Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-89801467892924083942016-03-19T10:17:00.001-07:002016-03-19T10:17:48.147-07:00ARMELAU – O MESTRE TAXIDERMISTA BRANDON <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjoUnWXEGDnLszsF-YQIplf0lt3-cDt5DIXf6jIJ99ALfyn0WWx3gEfkDVhOltk6Nj0qbDccs82bCBQbXVHAariMyct397APLPrpAqZEW2iL0dzt4DtoibF-RuvP25AobSEw25dpEscc875/s1600/SDC16633.JPG" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="150" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjoUnWXEGDnLszsF-YQIplf0lt3-cDt5DIXf6jIJ99ALfyn0WWx3gEfkDVhOltk6Nj0qbDccs82bCBQbXVHAariMyct397APLPrpAqZEW2iL0dzt4DtoibF-RuvP25AobSEw25dpEscc875/s200/SDC16633.JPG" width="200" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Brandon, escriturário e mestre do ofício da taxidermia, um homem dotado de extrema magreza e aspecto frágil, o qual naturalmente compensava com a cara de ódio como se desse ao mundo o recado de sua real ferocidade, era todo ele uma imensa contradição entre a delgada solidez física e a subjetividade da personalidade inflada. <br /><br />A despeito de sua aparente fragilidade, o homem cria-se uma fera e tentava convencer todos à sua volta do quanto nada significava aquela aparência. Aos finais de semana, ocupava-se em dar trato aos bichos mortos e passear com seu poodle pelo bairro em atitude vigilante. Mantinha também na rede social um grupo no qual se compartilhava toda e qualquer presença e ou atitude suspeita nas imediações. <br /><br />Certa vez, quando Armelau atravessava o portão de sua morada para sair em uma caminhada, o poodle de Brandon invadiu sua garagem. Antes mesmo que o sonâmbulo voltasse o rosto para o interior da área, a fim de ver aonde ia o pequeno invasor, Brandon, sem pedir licença, invadiu a casa de Armelau sob pretexto de resgatar o animal e perscrutou cada canto visível, o lixo e cada entrada da residência do vizinho. Satisfeito após a sondagem, Brandon voltou para a calçada e com um breve assobio teve o bichinho de estimação a seus pés se contorcendo e abanando o cotozinho obedientemente. <br /><br />Armelau então fechou atrás de si o portão, volveu a chave e teve sérias dúvidas se aquilo não era mais uma peça onírica pregada por outro incômodo pesadelo. Mas não. Brandon fez um comentário sobre o quanto o poodle era traquina e perguntou se o vizinho estaria saindo em caminhada, alinhou passo e ambos partiram para um passei pelo ensolarado bairro. <br /><br />Naquela manhã, nasceria uma amizade que traria à monótona vida de Armelau um contato mais estreito com a ameaça da criminalidade ao bairro e propiciaria também os primeiros passos na arte da taxidermia. Foi este o assunto que despertou o interesse de Armelau pela contraditória e enigmática figura de seu vizinho Brandon. <br /><br />Empolgado, o homem magro revelou ao vizinho seu gosto pela taxidermia e ódio pelos bandidos, infratores e contraventores. Disse ser capaz de dar vida eterna às formas de qualquer criatura morta ou viva sobre a face da terra, de bem ou não. Armelau apenas assentia com a cabeça e parecia vagar distante com a ideia e possibilidades contidas nela. <br /><br />Aos finais de semana, em suas caminhadas solitárias, vez ou outra Armelau deparava-se com algum pequeno pássaro falecido sobre uma calçada, a rua ou algum canteiro. Aquela ausência de vida sempre intrigou Armelau. Indagava-se de como teriam sido os momentos finais daquele ser capaz de voar sobre todos os outros seres. Era mesmo uma incógnita a circunstância do óbito. Perguntava-se se seria o caso de o pequeno já ter aterrissado agonizante e expirado sobre a superfície na qual fora encontrado. Ou quem sabe a criaturazinha tivesse sido acometida por um mal súbito enquanto cantava lugubremente empoleirada num galho ou fio de telefone ou eletricidade. Ou ainda, num ato carregado de dramaticidade, o pequeno ser sentira o fel do grão envenenado da lavoura envenenada espremer o seu canto e constringir sua glote até a escuridão tomar por completo as cores do dia por de trás de suas pequeninas pálpebras. Ou talvez, enquanto planava uma massa de ar aquecida e confortável, teria sentido a ardência que antecede o coração que para e faz com que os pássaros deixem seu corpo abandonado em um último rasante atingir o chão sem sequer estar presente para sentir o próprio baque na solidez do asfalto. <br /><br />Armelau sempre quis fazer algo que imortalizasse aquelas criaturinhas em seus dias dotadas da mais divina graça, a de voar pelos céus. Interessou-se pela taxidermia de Brandon, que era infinitamente mais ambicioso em seus planos na arte do que seu primeiro e único pupilo. Armelau iniciou pelos mais comuns, os pardais.</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-77776791519263460852016-03-12T08:26:00.001-08:002016-04-16T19:08:56.990-07:00ARMELAU - LÁGRIMAS DE MORÉIA<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiXHhbfCkINI13YQViNYIUFsoTUuQKXa6aCpl5fpPlKd23pLeiUfMvR4Qb0SErDPC4VW5YRhmib9dh-OOJI_qIVcJNKtVN9QmyCgTMMdJyT4d6LdgShARpMTq1piE4WxotrEw80PjfHuYS-/s1600/SDC16633.JPG" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="150" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiXHhbfCkINI13YQViNYIUFsoTUuQKXa6aCpl5fpPlKd23pLeiUfMvR4Qb0SErDPC4VW5YRhmib9dh-OOJI_qIVcJNKtVN9QmyCgTMMdJyT4d6LdgShARpMTq1piE4WxotrEw80PjfHuYS-/s200/SDC16633.JPG" width="200" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
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</xml><![endif]--><span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Pela porta entreaberta, era
possível ver Moréia. Revoltada, ela chorava sobre a sequidão de suas carnes,
soluçava com os anos acumulados nas papadas de seus lábios e tremelicava
comprimindo as rugas incrustadas no entorno de seus olhos. Cada vez mais seca,
cada vez mais rude, cada vez mais amargurada. </span></span><span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Bildo já não trazia alento algum
às frustrações da gerente. O rapaz estava demasiadamente envolvido nos cuidados
d<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">o recém nascido </span>Musca e em seus projetos pessoais de provar ao pai que jamais deveria ter
sido qualificado como um bastardo. Corria o dia todo feito um louco atordoado.
Incansável, a todos os lugares passíveis de vendas visitava abraçando mais
compromissos do que seus braços eram capazes de sustentar. Deixava atrás de si
um rastro de incontáveis clientes insatisfeitos. Chegavam reclamações de todas
as partes á ZT3, as quais Moréia ocultava carinhosamente em sua caixinha de
segredos. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Era a versão mais triste possível
da caixa de Pandora a caixeta de Moréia. Enquanto Pandora abrigava em sua caixa
todos os males do mundo ocultos aos inocente<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">s</span> e esperançosos olhos dos
homens, tudo que Moréia trazia em sua caixinha era o bolor do desalento e a
sequidão da desilusão, o vazio existencial e os rancores dos relacionamentos
desastrosos, os desamores platônicos e as frustrações das mais ínfimas mazelas
mundanas. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Wilson José era um funcionário
público da gráfica do município. Dotado da força de um <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">b</span>urro <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">e da inteligência de um asno</span>, Wilson José desfrutava
com grande avidez as vantagens de um cargo de confiança concedido pelo chefe do
município por conta de favores inescrutáveis devidos ao seu pai. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Certa vez, a gráfica do município
contratou os serviços da ZT3 para o fornecimento de matéria prima para uma ação
panfletária em resposta às revelações supostamente levianas da oposição. A
empresa de papéis enviou Moréia e outra funcionária para tratar o montante e
fechar o contrato. Diante à mesa de Wilson José, Moréia imaginou assentar-se
frente a frente com um homem de poder. Sentiu comichões de agarrá-lo pelos
colarinhos altos da camisa a fim de atracarem-se ali mesmo como dois cães
desvalidos. Descobriu o telefone pessoal do rapaz e passou a comunicar-se com
ele, diariamente, através da rede social. Como ocorria em todo encontro casual,
Moréia começou a acreditar que Wilson José seria a solução de seus sérios
problemas de relacionamento. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Wilson José, por seu turno,
passou a frequentar a ZT3 Paper Company sob os mais variados pretextos de
acerto. Parava diante à porta de Moréia e olhava para a senhora senhorita como
quem encarasse uma torta de amoras maduras amanhecida. Moréia retribuía com o
langor de uma tórrida coxinha de codorna restante em um imenso prato branco de
porcelana. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Passavam longos minutos assim,
como a exibir apetites voluptuosos um sobre o outro. Para Wilson José, aquilo
era o exercício pleno de sua condição de garanhão fidalgo e dono de posto de
serviço público de lugarejo. Quanto à Moréia, era a grande oportunidade de ir à
forra para com aquelas que sempre caçoavam dela pelas costas e provar que
despertava mais do que desinteresse e sono nos homens.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">E como já era de se prever, o
relacionamento entre ambos não foi além das insinuações de um morno enlace
amoroso no gabinete e de meia dúzia de encontros matutinos das saídas das
baladas nas quais ambos eram figuras desenquadradas e deslocadas por conta do
atraso no andamento da cronologia de suas vidas. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">
</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Como ambos sendo livres e
desimpedidos, não havia qualquer pretexto plausível a favor de Wilson José para
sair fora de Moréia. Foi então que o funcionário público se saiu dizendo que
Moréia era muito pra ele, que, como tendo três mamilos, se sentia totalmente
inadequado dentro de uma eventual relação com a senhora senhorita. O fez via
rede social. Naquele exato minuto no qual Armelau avistou a gerente esvair-se
em lágrimas assentada em seu posto de trabalho.</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-47906826714284709662016-03-05T07:20:00.001-08:002016-04-16T15:50:01.788-07:00ARMELAU – A FRESTA SOMBRIA<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh5HeZArqfwnGGgDlZTKDFJGy_z3FivsRJv4L2OkUzR428iVNweMu3SkF8EWJz3EmTCGCOYrpqyl3Dchz_90UV0LOC25-vpI9VI1H9Yq3wtGdFU1SmGZSlRlLqyTcpZOtEvP95ybppWt3la/s1600/SDC16633.JPG" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="150" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh5HeZArqfwnGGgDlZTKDFJGy_z3FivsRJv4L2OkUzR428iVNweMu3SkF8EWJz3EmTCGCOYrpqyl3Dchz_90UV0LOC25-vpI9VI1H9Yq3wtGdFU1SmGZSlRlLqyTcpZOtEvP95ybppWt3la/s200/SDC16633.JPG" width="200" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
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</xml><![endif]--><span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Era uma manhã chuvosa. Os
funcionários da ZT3 Paper Company chega<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">r</span>am de todos os lados com suas capas
impermeáveis, galochas, capotes<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"> e</span> capacetes, guarda-chuvas, cremes hidratantes
de uso diário com óleo na composição. </span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Armelau vinha de uma noite de
sono intermitente e estava extremamente sonolento naquela ocasião. Sorvia um
copinho de café, quando notou que o cadarço de seu sapato preto estava em
desalinho<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">, </span>quase desamarrado. Afastou um pouco a cadeira e abaixou-se para
atar o cadarço. Percebeu algum movimento vindo da parede lateral. Notou a
fresta escura entre o piso e o rodapé daquela parede. Foi ali que o movimento
se encerrou com a evasão de um pequeno vulto para dentro da estrutura da
edificação. </span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">O funcionário então retornou aos
seus trabalhos. Trinta minutos mais tarde, levantou-se da cadeira e usou toda a
possibilidade de abertura da porta de seu gabinete, a fim de observar as outras
duas portas à sua frente. A da esquerda, abrigava Moréia em seu tailleur azul
marinho e com os saltos agulha Luis XV de todos os dias. A gerente
administrativa se encarregava do computador à sua frente e da rede social no
celular ao seu lado. </span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">A maior parte de sua vida social
ocorria dentro daquela pequenina tela. Nas redes sociais, a mulher encontrou
vazão à sua solidão e fantasias de ascensão. Algumas das funcionárias
compartilhavam essa visão de mundo, outras, além de refutar, sentiam pena da
gerente e ofertavam alguma atenção ao seu discurso raso. Ela falava às suas
subalternas da rede social como se aqueles fossem assuntos da maior relevância
e <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">grande </span>importância: empolgava-se com fofocas, disseminava intrigas, comentava
como informação dada a rotina de pessoas que ela sequer conhecia pessoalmente e
menos ainda era conhecida das personagens em questão.</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Armelau teve a impressão de notar
uma outra fresta bem no canto da parede na qual estava assentada a mesa da
gerente, entre o piso e o rodapé. O que chamou a atenção de Armelau para a
imperfeição do edifício foi novamente um ágil movimento de uma pequen<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">a</span> <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">mancha</span>
para dentro da fenda. Ponderou que ZT3 Paper Company estava necessitando de uma
dedetização.</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Já a porta à direita da visão de
Armelau, abrigava Bildo e Musca lutando arduamente com os fardos de papel. Em
apenas uma semana a criatura assumiu o porte de seu progenitor, e criador e
criatura alcançavam praticamente a mesma estatura. Ao notar o fato, Armelau
ficou maravilhado com o fenômeno, porém não conseguiu concluir em tempo se a
estatura de Bildo era de fácil alcance ou se Musca, o filho de Bildo, era um
gênio transmutado. </span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Sob pretexto de descansar por dez
minutos após cinquenta de atividade ininterrupta, Armelau levantou-se e seguiu
pelo corredor à direita, <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">a fim de</span> apanhar mais uma abastada dose de café. Na volta da cafeteira,
estacou diante <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">à</span> porta de pai e filho e disse olá, ao que ambos responderam sem
erguer o olhar em direção à face do taxidermista amador. O sonâmbulo tentou
iniciar uma conversa sobre a chuva copiosa, porém ficou igualmente com a
indiferença de outra resposta curta e de concordância como um lacônico é. Gastou algum
tempo ainda de pé à porta da sala de Bildo e Musca soprando e sorvendo o café e
perscrutando com o olhar a junção do piso dos quatro cantos visíveis da sala, a
fim de encontrar alguma fenda como as descobertas em sua própria sala e na de
Moréia. Não encontrou nenhuma. No entanto havia a possibilidade de algum dos
fardos ou das caixas de papel estarem em posição de ocultar a imperfeição. Mesmo
insatisfeito, o prestidigitador sonolento retornou ao seu posto de trabalho, e
porque não dizer, observação. </span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">A caminho de seu gabinete,
Armelau avistou Croco sentado diante à mesa de Moréia. Ambos estavam envolvidos
em uma conversação <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">híbrida</span> de formalidade e descontração usada em anos por
ambos sem jamais ser renovada. Sob o efeito Dopller, Armelau se aproximou da
porta ouvindo em som crescente a mesma piada simulacro de deboche de Croco e se
afastou ouvindo em tom decrescente a piada ser seguida pela mesma risada
simulacro de reprovação de Moréia.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Como sendo a porta de Armelau
dotada do dobro da largura de cada porta situada à frente de sua sala, após
sentar-se em sua cadeira, o sonâmbulo ainda lançou mais um olhar para dentro da
sala à direita. Riu ternamente quando notou Bildo, que havia deixado a
extenuante tarefa da preparação das caixas de papel para galopar de um lado a
outro do gabinete com o já crescido e sorridente de dentes cerrados Musca sobre
seus ombros. Ambos pareciam se divertir à grande. Porém, ao passar o olhar de
retorno diante à sala de Moréia, foi com estranheza que notou, além da ausência
repentina de Croco, a imagem de um vulto circular e denso espremer-se contra a
fresta <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">a</span>o pé da parede até desaparecer por completo <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">na brevidade de um</span>
segundo.</span></span><span style="mso-spacerun: yes;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"> </span></span> </span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-85898186709293806772016-02-26T16:19:00.000-08:002016-04-19T16:10:46.277-07:00 ARMELAU – A PROCRIAÇÃO DE BILDO<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgt3q1gXTXkTBikJXBsIyifibWQsA3_2z2UYOPfMHEz8usctUSmuL0iDlzpa6b95gDh7aPDN1ko8amWovycQWvRT_tdXsUP8xgft-PmTq5g455quzsyYbwHged5LnCmcXTljiwFSLCoGMBC/s1600/SDC16633.JPG" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="150" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgt3q1gXTXkTBikJXBsIyifibWQsA3_2z2UYOPfMHEz8usctUSmuL0iDlzpa6b95gDh7aPDN1ko8amWovycQWvRT_tdXsUP8xgft-PmTq5g455quzsyYbwHged5LnCmcXTljiwFSLCoGMBC/s200/SDC16633.JPG" width="200" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Tudo na ZT3 Paper Company transcorria naturalmente, até que, numa bela manhã de verão, Bildo desse cria. Moréia festejou o nascimento do rebento de seu affair platônico como se a criaturinha tivesse surgido de suas próprias entranhas. Ainda que de modo não consensual, tudo em Bildo e Moréia culminava n<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">uma natural </span>simbiose<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"> </span>existencial. <br /><br />Ambos viviam a sórdida rotina de planeja<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">r</span> ínfimas trapaças, trama<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">r</span> pequenos trambiques<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"> e</span> camufla<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">r</span> leves delitos. Tudo dentro da mais harmoniosa e oculta cumplicidade. Bildo ludibriava os clientes e entregava menos papel do que a ZT3 vendia e recebia da ZT3 valor bem superior ao que entregava. Moréia sabia da armação, apoiava e passava um pano sempre que necessário. Ambos tomaram gosto pelo ato de burlar e festejavam a cada truque bem sucedido. Traçavam pequenas metas sempre em favor de Bildo. Tudo era em favor de Bildo, contanto que fosse em detrimento de Armelau e dos demais vendedores. Enganavam a gregos e troianos e riam interiormente, satisfeitos por sempre encontrarem-se ilesos bem debaixo dos narizes dos clarividentes<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"> </span>do subsolo da ZT3. <br /><br />Na concepção de Moréia, por mais infame e inescrupulosa que fosse a manobra, Bildo deveria levar vantagem <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">acima de</span> tudo. Na fantasia da jovem senhora, A ZT3 era apenas um veículo para suas questões pessoais. <br /><br />Quanto a Bildo, a pele de coitado rendia dividendos com os quais nem o próprio rapaz havia sonhado quando engendrou a primeira trapaça sob os auspícios de Moréia. Um contrato que <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">acabar<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">ia <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">por</span></span></span> <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">eliminar</span> um concorrente<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"> </span>foi o pontapé inicial na trajetória do farsante com sua tutora. Armelau sabia da <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">tramoia</span> de ambos e ficou indignado quando viu a maneira sorrateira com a qual Bildo assumiu posição em lugar de seu antigo empregador. Bildo não tinha champanhe<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">,</span> <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">f</span>estejou com cerveja, linguiça e <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">farofa</span>. <br /><br />Bildo vivia oculto na pele de coitado. Erguia a bandeira de <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">neto bastardo do seu bisavô</span> e seguia sua marcha modorrenta. Trazia escrito em sua testa a frase<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"> de <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">autopiedade</span></span>, suavizava a voz em um tom nasal lamurioso e fixava seus olhos súplices sobre seus interlocutores como se tivesse o dever de explicar a todos os supostos erros do mundo em desfavor de si. Por seu turno, Moréia destilava em uma imensurável coleção de intrigas e picuinhas o seu dissabor por ser eternamente mal amada no amor. Sua vida era um quadro <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">em preto e branco</span>. Vivia só e solitária. Todas as suas relações pessoais terminavam c<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">orrompidas em meio a intrigas e fof<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">ocas. </span></span>Bastava que alguém fizesse qualquer coisa que a contrariasse em seu dia para que a mulher alugasse dezenas de orelhas para desfiar sua narrativa maledicente como se todo desafeto seu devesse ser odiado também pelo mundo inteiro.<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"> </span>O caráter de <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">ambos</span> <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">reultava</span> num duo perfeito. <br /><br />Antes da chegada de Bildo, Armelau e os demais vendedores viviam uma era de paz em seus pequenos gabinetes atrás de suas minúsculas mesas. Armelau era centrado demais em si próprio para perceber que Moréia projetava nele seus sonhos mais secretos e inconfessáveis. Assim como fez com todos os outros encarregados de vendas antes dele, a mulher lançou no sonâmbulo suas projeções amorosas emboloradas no fungo da frustração. Imaginou correr com o então novo funcionário de mãos dadas por um canavial dourado. Ver o dia amanhecer com o rosto deitado sobre o provavelmente cabeludo peito do prestidigitador sonolento. Tomar banho de rio em águas barrentas e secar o corpo nu sobre as pedras negras e sob o sol da manhã dos amantes. Tomar hectolitros de licor de jabuticaba na mesma taça do encarregado. Repartir o lanche de carne de carneiro no final da balada. Casar. Ter filhos. Um lar enfim. <br /><br />Mas para desespero da senhora que chegou <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">à</span> idade sem ter se casado, Armelau em nada correspondeu às suas expectativas. Sem dizer palavra, o encarregado manifestou o não às intenções da mulher e despertou nela um ódio tanto inexplicável quanto inesgotável. Se um dia ela se ocupou em lançar aos quatro cantos da ZT3 pétalas do quanto Armelau era adorável em seu modo onírico de ser, após o desencanto ocupou-se quase que exclusivamente em difamar o taxidermista amador distribuindo <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">cardos</span> que jurava serem frutos da própria queratina do funcionário. <br /><br />E em um cenário onde tudo desfavorecia Armelau, ele tomou um copinho plástico de café, a fim de rechaçar o terrível sono matinal. A porta de sua pequenina sala abriu-se por vontade própria. Na salinha contígua, Bildo<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"> surgi<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">u</span></span> de <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">pé, <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">para</span> em seguida agachar-se</span>, abaix<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">ar</span> as calças, ergue<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">r</span> a calda, esguich<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">ar</span> um fluido odorífero pelas glândulas recônditas e urr<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">ar</span> como <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">que</span> senti<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">ndo</span> espinhos romperem por sua cloaca. <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">Foi</span> o nascimento de Musca, ato presenciado <span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;">pelo atônito</span> Armelau. Bildo enfim deu cria. </span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-16401285826710348542016-02-09T11:59:00.000-08:002016-02-09T13:41:17.605-08:001981 – O DEFUNTO DA RUA DE TRÁS <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjSPDHw1dcWzyCL2p5e_4bRd375y1riH8eCaVRutWWLHmVx3RKyWdDW6WWD9HZmHZxtig1-B9-3OGTpkKkOw1GPbTpg-1Xy7gjZvJvOWaP092HdeNOeAVzXB_aKrLLW0-RK-wXB9kesl-Pz/s1600/SDC16633.JPG" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="150" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjSPDHw1dcWzyCL2p5e_4bRd375y1riH8eCaVRutWWLHmVx3RKyWdDW6WWD9HZmHZxtig1-B9-3OGTpkKkOw1GPbTpg-1Xy7gjZvJvOWaP092HdeNOeAVzXB_aKrLLW0-RK-wXB9kesl-Pz/s200/SDC16633.JPG" width="200" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
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</xml><![endif]--><!--[if gte mso 10]>
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<![endif]--><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">O ano é 1981 e eu tenho sete anos
de idade. Aquela tarde caía por de trás do horizonte e consigo levava o sol
para lugares distantes que eu jamais conheceria até o presente momento em que
teço essa narrativa. Naquele ano, morreram Bob Marley, músico, Amácio
Mazzaropi, ator e cineasta, Glauber Rocha, cineasta, e o defunto da rua de trás
do quarteirão no qual eu morava. Não que o homem tivesse vivido defunto e assim
morrido. Mas sim por eu tê-lo conhecido defunto e defunto ele ter vivido sempre
em minha memória. </span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Eu estava no portão de casa
olhando para o nada. Os moleques sujos e espancados da esquina percorriam a rua
convocando todos os outros garotos para verem o espetáculo do defunto
desfigurado da rua de trás. Eu já havia tomado meu banho, tinha o cabelo úmido
e meticulosamente repartido no meio da cabeça formando uma espécie de cortina
de testa. Vestia uma camiseta de listras com gola pólo e a bermuda de costuras
tortas feita com restos de brim pela minha avó, que sempre dizia que não sabia
costurar. Calçava as sofríveis sandálias franciscanas em couro marrom. Elas
eram péssimas para correr com a molecada da rua. Eu sempre ficava para trás por
causa da transpiração dos meus pés que deixava as sandálias escorregadias e com
a palmilha pegajosa por causa do barro formado pela poeira do asfalto. Pior era
quando algum pedrisco entrava entre a palmilha e a planta dos meus pés. </span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Parecia mesmo ser uma grande
aventura uma excursão para ver um defunto na rua de trás, uma oportunidade.
Disseram que era um homem muito velho e que havia sido atropelado por um
cavalo, ou uma charrete, ou uma carroça, ou um carro, ou um caminhão de
transportar gado para o abate. A cada frase dos garotos o acidente perdia e
ganhava elementos. </span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Eles perguntavam entusiasmados se
eu não ia ver o morto da cara de jornal, do nariz de cera, da perna de madeira,
do braço de plástico, do olho de vidro. O estrago feito pelo acidente teria
sido tamanho que a desfiguração do cadáver obrigou o uso de peças artificiais
para recompor o corpo a um estado viável ao velório. </span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Eu nunca havia visto um morto
para além da tela do meu televisor em preto e branco e de má sintonia. Os
moleques tinham muita pressa. Estavam esbaforidos. Já haviam ido e voltado
diversas vezes à casa do defunto. Queriam que o bairro inteiro testemunhasse o
grande evento fúnebre. </span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Mas eu não sabia se poderia ver o
morto, ainda mais sendo ele uma figura tão deformada e certamente assustadora.
A própria morte como evento e fenômeno sobrenatural seria o suficiente para
impedir de eu conseguir a autorização da minha mãe para embarcar em tal
expedição. Pior ainda sendo o defunto recomposto por partes de materiais
inumanos, algo que me traria à lembrança certo filme de terror no qual uma
criatura humanóide se regenerava diante dos olhos atônitos dos seus algozes
mutiladores. Tive várias noites de insônia após encontrar o filme do
“regenerator”, por acaso, durante uma visita, quando fui deixado na sala de uma
senhora enquanto meus pais conversavam com ela na copa. </span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Cabe salientar aqui que em momento
algum temi presenciar o fenômeno da auto-regeneração. Os divulgadores do evento
deixaram bem claro que as partes anexadas já estavam perfeitamente instaladas e
conformadas ao defunto. A lembrança do filme foi algo que me ocorreu quando
pensei em argumentar e justificar a importância do meu ingresso naquela
fantástica e imperdível excursão funérea.</span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Eu sabia que meu tempo de rua já
havia se esgotado naquele dia assim que entrei no banho, era a rotina. Pedi
apenas para ir até a esquina, algo que não levantaria qualquer suspeita sobre
minha verdadeira intenção, pois também fazia parte da rotina. Com sorte, minha
mãe estaria de bom humor e permitiria sem maiores questionamentos. O meu gosto
por ficar fora de casa não era nenhum segredo. </span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Fui feliz em meu intento e recebi
a autorização apenas para ver a rua mais um pouco. Podia ir até a esquina, mas
sem me sujar de modo algum. Para além daquilo, eu já cairia na ilegalidade.
Então parti. Contudo perdi a excursão dos moleques sujos e espancados e fiquei
ali na esquina mesmo, parado, sem coragem para ir sozinho ao outro lado do
quarteirão procurar pela casa do morto. </span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Após alguns minutos, um moleque
retardatário, morador das quadras de cima, descia para ver o morto desfigurado
e que havia sido anunciado inclusive em sua rua. Ele também desconhecia o exato
endereço. Descemos a procurar. Não foi difícil encontrar. As referências e as
pessoas aglomeradas nos levaram diretamente ao meio da rua de trás do
quarteirão.</span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Tratava-se de uma casa modesta de
paredes azuis desbotadas, muro e portão baixos e descascados. A residência
estava repleta de gente, e totalmente aberta ao público. Em seu interior,
movia-se uma massa trajada em cores escuras e que dizia frases doloridas e
derramava lágrimas aqui e ali em redor do esquife. Bem do meio daquela gente,
foi possível ver surgir algumas caras sujas e conhecidas, as dos moleques sujos
e espancados. Vinham lívidos e de olhos esbugalhados, porém, logo que notavam a
presença de outros moleques no recinto, eles providenciavam uma máscara de
sorriso falso, um simulacro de coragem e missão cumprida. </span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Muitos egressos da borda do
esquife certamente passariam diversas noites sem dormir por conta da forte
experiência de encarar a morte na face do morto. O movimento da massa fúnebre
era constante e logo me tragou para dentro de si. Aos poucos fui conduzido ao
destino de todos, que era a beirada do caixão. Vozes sussurravam a desventura
do velho, que teria sido brutalmente atropelado na estrada. Fiquei intrigado
pela circunstância de ele perambular pela pista sendo dotado de tanta idade. </span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Quando dei por mim, já estava de
pé diante o ataúde e seu misterioso habitante, um homem velho e magro de cabeça
branca e pele cinza, comprido como certamente seria a estrada que o matou. Ele
tinha um nariz fino e longo ladeado por dois grandes buracos cabeludos. Um
enorme par de orelhas murchas e com ouvidos cabeludos. Os olhos estavam
mergulhados dentro de suas profundas fossas orbitais. Não tinha lábios, apenas
uma fenda murcha e cerrada denotava a presença do que havia sido uma boca algum
dia. Seu rosto era fino e longo como todo o corpo e certamente feito de cera.
Suas mãos, ossudas e nodosas como galhos secos retorcidos, certamente eram
peças feitas a partir de alguma jabuticabeira. O resto eram flores brancas
murchas e um par de sapatos bicudos e compridos apontando para o teto escuro de
telhas sobre ripas. </span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Talvez aquele homem odiasse toda
aquela gente a aquecer a sala com seus corpos vivos capazes de derreter a cera
de algumas de suas partes postiças, o que seria um imenso vexame. Sobretudo ele
deveria odiar a presença dos moleques que ali estavam não para se despedir, mas
apenas para satisfazer a curiosidade mórbida em ver um defunto tão horrendo
quanto a criaturas de filmes de terror. </span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Disseram que o mais corajoso
entre todos os moleques tocaria o defunto, e que tocaram, porém nenhuma
testemunha confiável viu tal ousadia. Alguns viram o defunto se mexer como se
sentisse alguma coceira recôndita, outros juraram tê-lo visto abrir os olhos e
olhar de soslaio para um dos moleques. </span></span></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">
</span></span><br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: large;">Pude apenas notar que ele ainda
respirava pesadamente através de suas imensas fossas nasais cabeludas. Parecia
muito cansado. </span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-31047202146342851892014-12-31T15:42:00.000-08:002014-12-31T16:48:29.587-08:00REVEILLON<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgJtv6cLorSIDi0VHavPQy4K5RxJsxXdohhJrBggLR6SFRJm8j3uStMWobOMS-Z0ijC-8hMmSyTyWV3r5q1Y4pT8eusv_WLu83ki2QiCAWyrFtOr5aXquYmLCHuY8ifKo58x9zqtwBwdZ7Z/s1600/REVELLON1.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgJtv6cLorSIDi0VHavPQy4K5RxJsxXdohhJrBggLR6SFRJm8j3uStMWobOMS-Z0ijC-8hMmSyTyWV3r5q1Y4pT8eusv_WLu83ki2QiCAWyrFtOr5aXquYmLCHuY8ifKo58x9zqtwBwdZ7Z/s1600/REVELLON1.jpg" height="157" width="200" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Bala que partiu não tem volta. E se ela vai de encontro ao leito venoso do rio da vida que corre rumo ao fim, ai ai ai... Pode imediatamente dar início aos preparativos para a grande convenção final. Compre flores, muitas flores. Se possível, uma coroa com alguns dizeres genéricos bem bonitinhos, sensíveis, comoventes. Peça a um poeta para elaborar um texto bem tocante no sentido da compreensão das almas mais sensíveis. E se não conhecer nenhum poeta disponível, que horror!, mesmo que amador, deixe que o pessoal do marketing se encarregará do conteúdo, eles sempre sabem o que o povo gosta de ler de modo geral, amplo e irrestrito. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Já decidiu quem é que levará o seu esquife à mansão dos mortos? Veja bem, melhor que seja gente forte e saudável. Já teve infeliz que fez a escolha errada e acabou caindo na própria rua da cova, ao pé do sepulcral. Um vexame total para os amigos, não os tem, sim, mas tem parente, não importa que sejam poucos os tais, parentes e familiares: mãe e irmã, sobrinhos e sobrinhas, primos e primas, cunhado... Só indigentes perdem completamente o contato com as origens aborrecíveis da vida. Mas e o esquife em si será daqueles com ornamentos e em madeira nobre, sim. Não. E quem é que pode nos dias de hoje dar-se a tais luxos. Mas vê lá se não faz muita economia nessa ocasião tão especial da sua história; só se morre uma vez na vida, hein. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">A roupa também tem que representar bem. Não importa que nunca tenha usado um traje social em vida; quando se morre, faz figura para quem vier ver, não é a seu gosto que tem que ser, entenda isso logo de uma vez. É uma ocasião muito importante pra você se apresentar daquele jeito jeca que passa todos os dias parecendo que não tem outra troca senão uma bermuda velha e uma camiseta branca toda furada, peças que veste ao rastejar da cama e que pendura na cabeceira ao final de mais um dia modorrento. Ah, e aquele chinelo ridículo, por favor, hein, não vá aparecer dentro do caixão de meias e com aqueles chinelos. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Olha, se começar a feder, não terá como esperar o pessoal que chega naquele vôo do nordeste. Sua tia, a irmã da sua mãe, certamente quererá vir para vê-la. Sim. Vê-la. Pois quem é que perde tempo em vê-lo, novo defunto estraga festas. Não seja sentimentalóide, oras. Elas só se vêm em ocasiões especiais. Virá ela e o filho, aquele barbudo e bem sucedido no ramo da agiotagem, aquele que sempre conta seus sucessos nas aquisições quando aparece a cada década. Verdade é que eles nem deveriam vir. Primeiro, por que perderão o passeio que pagarão ainda durante o ano inteiro. Depois, acabarão deixando todo mundo tenso e envolvidos numa espera inútil, não dará tempo mesmo de verem sua cara, defunto. Passagens aéreas são muito concorridas nesta época do ano por conta das festas; embora nunca tenha andado de avião, você sabe. Terão que arranjar hospedagem, pois o padrão deles não admite improviso em casa de parente. Será mais um constrangimento. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Com a papelada não se preocupe, meu amigo. Aquele seu cunhado que te detesta e vive te criticando pelas costas tomará a frente de tudo só pra poupar sua irmã bonitona da trabalheira burocrática. E ele é bom com essas coisas, não é mesmo. Já trabalhou em cartório e até fez Direito, embora jamais tenha passado no exame da Ordem. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Bem capaz que apareça alguma daquelas mulherezinhas com quem andou se enroscando e chafurdando nos últimos anos. Caso apareça de fato, fará contra ponto à sua esposa, mulher decente, maravilhosa. Uma loba. Continua em plena forma, às portas dos quarenta bem vividos e bem rodados. Mulherão do caramba. Ainda bem que não fez filhos nela. Seria um transtorno pra vida inteira ter que ficar tratando de guarda, visitas, deveres com você, que nunca prestou pra nada que fosse compromisso sério. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">E só estou tentando entender como é que você veio parar aqui, em Ilha Comprida, plena noite de ano, só pra ver a queima de fogos. Com tanta Copacabana por aí, e você vem parar justamente aqui, e na quitinete do seu cunhado. Deve ter deixado o lugar um lixo, nojento, seu porco. E depois ainda terão que dar um jeito na pia da cozinha entupida e imunda e naquelas latinhas todas jogadas por toda parte, e até camisinhas você deixou pra fora do cesto do banheiro. Um horror. Sua roupa limpa misturada à roupa suja, e tudo vai de embolada. Nem sei como é que conseguiu se vestir para chegar até a praia. A morena que conheceu no quiosque levará um susto de morte. Ela se arrependerá até o último fio de cabelo crespo da alma por ter aceitado deixar a bandeja pra te acompanhar à beira do mar. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Tem de tudo aqui. É uma tribo contemporânea. A cada ano a repetição só tende a aumentar. Muita gente de branco, garrafas de champanhe barato empunha pelo gargalo e taças em brindes desordenados e tilintares surdos. Cada qual com seu objeto de captar imagem e acessar internet do momento, algo que muito diz sobre a condição social dos felizes fotógrafos da ocasião. Uma molecada de mãos atadas às mãos dos pais. Uma molecada adolescente planejando suas aventuras sexuais pelo calçadão. Gente pulando ondinhas. Oferendas à Iemanjá. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Vai começar a queima dos fogos, o show pirotécnico bancado pela prefeitura municipal de Ilha Comprida – SP. Até que você não ficou mal com esta roupa. Não havia escolha de uma camisa melhor para dar o tom dramático à ocasião, camisa branca. Além do mais, esta camisa combina perfeitamente com a bermuda caqui do ano passado. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Vem a primeira rajada de fogos. O céu fica colorido por inúmeros pontos fugazes, que sedem vez a outros pontos igualmente fugazes, que parecem eclodir de dentro de seus predecessores. É bonito. E com tanta gente se movimentando por toda parte, e gente inebriada pelo espetáculo que ilustra o céu especialmente estrelado na noite da virada, é claro que malandro tentará aproveitar o delírio coletivo pra fazer função e gozar sorte. A mulher não quer largar a bolsa e o malandro já tá muito louco chapado na pedra quente da lata, pra coçar o dedo falta isso aqui, um triz. O marido dá um passo à frente pra tentar desvencilhar a mulher da bolsa ou até mesmo resgatar a bolsa de volta, eu sei lá, eles terão que explicar tudo direitinho ao delegado da 8° DP de polícia, é, lá na delegacia, dentro em poucos minutos. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">A segunda bateria de fogos sobrepõe-se a primeira e parece que o melhor ainda estava reservado para compor um espetáculo crescente. No céu, os pontos são brancos, amarelos, verdes e vermelhos. Em sua camisa, infelizmente para alguns poucos, e nem me venha com hipocrisia dizer que estatísticas e noticiários possuem sentimentos, que passo-lhe um esculacho sem o menor cuidado em ofender, logo o borrão carmim estará estampado. E parecerá vivo na manhca crescente e cada vez mais informe. Sentiu queimar as costas como se uma brasa lhe tivesse repousado sobre a pele e o peito foi quem umedeceu, pois varou o projétil. Arfou em busca do ar, que não veio. As forças e o tônus se esvaiam no fluxo da brisa marítima e das brisas mais das ocasiões públicas festivas. Soltou a mão da morena e levou a mão à ferida da saída como que pra conferir o bilhete de partida. Caiu de joelhos de frente pro cargueiro que estava atracado próximo à praia desde o início da semana. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Tudo culminou naquele desfeche: desde a sua decisão de passar a virada do ano vendo a queima de fogos em Ilha Comprida, até o meliante que achou de aproveitar o ensejo pra angariar algumas bolsas na moral. E não há como retroceder na trajetória certeira. E como já disse, bala que partiu...</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com9tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-89021197970792939962014-12-08T13:12:00.002-08:002015-02-07T09:10:05.221-08:00ARMELAU – HELLHAISER E OS SETE EURICOS<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiarCbdv1rnSyq8C66Zeh4amZS-0ofgvP-rQBBhgLLT5iCu7MW7RR8Ov-jwp2SgcLoDfPLwnEkliID_1rAhdGL9HmxnSXNkDCzujLFHoVTO8dPBFwTdQAjp-WIZN2r5PJl3uOFDGq3W7Izh/s1600/%5BCONTO%5D+A+ON%C3%8DRICA+COMPETI%C3%87%C3%83O+DE+ARMELAU.JPG" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiarCbdv1rnSyq8C66Zeh4amZS-0ofgvP-rQBBhgLLT5iCu7MW7RR8Ov-jwp2SgcLoDfPLwnEkliID_1rAhdGL9HmxnSXNkDCzujLFHoVTO8dPBFwTdQAjp-WIZN2r5PJl3uOFDGq3W7Izh/s1600/%5BCONTO%5D+A+ON%C3%8DRICA+COMPETI%C3%87%C3%83O+DE+ARMELAU.JPG" height="200" width="150" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Naquela manhã chuvosa, as horas não passavam no relógio de parede posto diante da mesa de Armelau, à meia altura. O ponteiro dos segundos era vermelho e o funcionário, dominado por tédio e apatia, achou de acompanhar a passagem do tempo com os olhos fixos no movimento daquela estreita haste hipnótica até completar a hora para o almoço. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Logo perdeu de vista o fundo branco do aparelho e viu a cor escarlate tecer uma fina película opaca, algo feito uma névoa insinuante, que se expandia do centro para as extremidades do objeto e aos poucos tomava a forma de um furo pregueado na parede diante o funcionário bocejante. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Armelau ouviu passos ecoados do corredor. Ajeitou sua postura na cadeira tratando de voltar os olhos imediatamente para a tela do computador, e deitou a mão sobre o mouse, e fingiu ler algo atentamente para não ser surpreendido por algum superior em pleno ócio no ofício. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Era Edmundo Hellraiser, o encarregado de setor, que na verdade não sabia ser Hellraiser, pois seu nome de batismo era Edmundo Ambrósio, a alcunha de Hellraiser fora colocado pelo pessoal do almoxarifado, por motivos especiais e vingativos. Cabe destacar que o almoxarifado da empresa era uma espécie de oficina do Diabo. Ali ficavam os funcionários mais antigos, maldosos e maledicentes do local. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Mas Edmundo bem que merecia o apelido. Vivia reclamando da vida e falando mal dos outros. Estava sempre fritando alguém, e quando não tinha a quem fritar por ali, fritava seu marido a qualquer um que quisesse ouvir. Sim, marido. Não eram oficialmente casados, porém viviam juntos há muitos anos. Ele dizia que o marido era um preguiçoso. E dizia que ele era depressivo, e que nunca havia se recuperado da perda da mãe, e que fora um erro ter se juntado ao cônjuge, e que o sujeito só sabia dormir e jogar videogame... Dizia o tempo todo. Daí a alcunha de Hellraiser, o renascido do inferno. E então o maledicente de todas as gentes entrou pela sala de Armelau e disse que tinha que colocar uma balança para pesar os fardos de papel ao lado da mesa dele. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Assim, de súbito, no meio da manhã... Armelau achou aquilo estranho e preferiu não discutir. Os carregadores de fardos de papel nunca andam sozinhos e aquilo perturbaria sobremodo o ambiente. Seria um abrir e fechar de porta sem fim. Gente conversando sobre coisas que não interessam a ninguém e olhando tudo dentro da sala com olhos curiosos e perscrutadores. Um cheiro de constrangimento pairava no ar. Mas ele consentiu com a cabeça num gesto resignado. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Armelau voltou os olhos para o local onde estaria o relógio e o objeto não guardava de modo algum sua forma original. Apenas o buraco esférico circundado por um halo róseo contrátil e de fendas escarlate pairava molemente na parede diante de sua mesa, à meia altura. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Hellraiser saiu pelo mesmo corredor que o trouxe e retornou antes mesmo que qualquer elemento acusasse a mínima passagem de tempo. O tempo se extinguiu como por um encantamento e Armelau procurava aflito outro relógio ao pé da tela do seu computador. Não havia nada lá. Tateou os bolsos em busca do celular e também não o encontrou. Ficou tenso por não saber que horas era e assim, consequentemente, não poder sair para o almoço. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Novamente ouviu passos em direção à sua sala e viu Hellraiser entrar, mas dessa vez acompanhado de um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete Euricos. Por algum motivo de fundo pessoal o homem queria provar a Armelau que ele não tinha autonomia nenhuma sobre sua sala ou até mesmo sobre si. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Euricos eram auditores e cada qual correspondia a um vício humano. Havia o Eurico Glutão, o Eurico Avaro, o Eurico Luxurioso, o Eurico Iracundo, o Eurico Invejoso, o Eurico Preguiçoso e o Eurico Orgulhoso.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Aquilo já era demais. Aquela gente toda passando pra lá e pra cá era de enlouquecer até mesmo o pacato Armelau. E o homem não aceitou. Levantou-se de sua mesa e gritou furiosamente com uma voz gutural para que Hellraiser e os Euricos sumissem pelo buraco da parede, que naquele momento apresentava o diâmetro de uma roda de carroça. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Os Euricos correram pela porta por onde haviam entrado e Hellraiser ficou vesgo, girou, revirou os olhos e apontou sua língua fina e estreita para fora da boca cada vez mais achatada. Sua cabeça também se achatou. Sua pele passou de rósea à branca e o sujeito estrebuchou em terríveis espasmos lançando os braços à frente e as pernas para os lados. Seus membros se encolhiam e apontava-lhe no prolongamento do cóccix uma pequena calda, que se alongara sobremodo a cada espasmo da criatura. Logo o corpo todo do encarregado de setor retraiu-se e o ser inumano assumiu a forma de um pequeno animal. Caiu no chão e escalou a parede até alcançar o furo. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Armelau estava aterrorizado e tentou fugir de sua própria sala. Esbarrou no copo plástico de café, que banhou sua perna manchando a calça. Sentiu o calor na virilha e tentou abanar-se. Ao retornar os olhos na direção da criatura metamorfoseada, viu apenas uma pequena lagartixa plantada ao lado do relógio de parede. Era meio dia e meia, hora de partir para o almoço.</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-47521359606261958652014-10-12T18:12:00.001-07:002014-11-15T18:03:51.554-08:00NORMANDO, O PARANORMAL<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjyf_Z8evhefLjuHb4OKdlW32eugswzVwSo2RTzKkNhgogm38DEL3mA2fMEGJCZFCgTMKhPO6ovMhmvO9fzSXiEHRiMMqZIocqslST0tSTbEMO0jD44n68r-_8dHv-AmdcRDIVvQZFcqyzK/s1600/SDC13457.JPG" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjyf_Z8evhefLjuHb4OKdlW32eugswzVwSo2RTzKkNhgogm38DEL3mA2fMEGJCZFCgTMKhPO6ovMhmvO9fzSXiEHRiMMqZIocqslST0tSTbEMO0jD44n68r-_8dHv-AmdcRDIVvQZFcqyzK/s1600/SDC13457.JPG" height="150" width="200" /></a></div>
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<span style="color: #990000;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">NORMANDO, O PARANORMAL</span></span></span><br />
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Para Normando, o mundo das coisas visíveis era simplesmente o esconderijo das coisas invisíveis. <br /><br />Numa noite tumultuosa e tempestiva, uma em que os ventos balouçavam furiosamente as janelas e deitavam as copas das velhas árvores quebrando galhos e guinchando assovios infernalmente agudos, Normando acordou ao sentir um repelão no pé esquerdo, que pendia para fora dos limites do colchão durante a agitação causada por um horrível pesadelo. <br /><br />Levemente angustiado, Normando sentou-se à beira do leito, olhou no relógio de cabeceira, que marcava 03h33min, sentiu o corpo todo dorido e ainda com a impressão de ossudas e nodosas garras em torno de seu tornozelo, ainda meio besta sob a sedação do sono, sentou-se à beira da cama e procurou por suas pantufas tateando com as plantas dos pés. Primeiro, na lateral da mesma por sobre o tapete branco encardido de tricô, depois, embaixo da mesma. As pantufas haviam desaparecido mais uma vez. Lamentou o fato recorrente e foi mesmo descalço até a cozinha para tomar um copo de água fresca, não gelada; Normando sempre detestou água gelada e com gosto de geladeira. Se alguém quisesse agradar Normando, que não lhe oferecesse água gelada em momento algum. Mais do que tomar água, Normando precisava ir ao banheiro. Tinha a bexiga preenchida até a uretra. No entanto não sentia presença de coragem e ou disposição para pisar no úmido chão do banheiro com os pés descalços. Decidiu que iria até a escura lavanderia em busca de algum outro calçado. <br /><br />Abriu a porta rangente da lavanderia, procurou o interruptor da luz, porém encontrou apenas uma superfície peluda sobre o que seria o interruptor. Retirou rapidamente a mão do local e trouxe-a para junto de si, rente ao peito. Respirou fundo, mentalizou uma oração e tentou novamente a ação. Desta vez encontrou lá o interruptor e acendeu a luz, que pouco iluminava. Havia uma pequena prateleira ao canto da parede posterior do cubículo. Encontrou um par de velhos chinelos e inclinou-se para apanhá-lo. No canto posterior do cubículo, à esquerda do batente de entrada, uma mulher arquejada chorava copiosamente enquanto desprendia de seu corpo chamuscado uma odorífera fumaça fina. Normando, lívido e gélido, achou melhor ignorar a triste figura da lavanderia. Passou rente à figura desconsolada e sequer se lembrou de apagar a luz. Fechou a porta e quase estatelou ao ouvir os terríveis gritos vindos lá de dentro. Uma mistura entre “minhas carnes ardem em brasas!” e “apague esta maldita luz, seu miserável!”. Normando abriu a porta apenas o suficiente para que sua mão alcançasse o interruptor e apagasse a luz. Fechou a porta. Respirou fundo. Seguiu orando. <br /><br />Tudo ficou silencioso e o homem pode finalmente ir ao banheiro aliviar-se da pressão hidrostática que ameaçava romper com sua bexiga. Levou a mão à maçaneta e tentou abrir a porta do banheiro, porém deveria estar emperrada, pois parecia fechada por dentro, o que seria impossível, uma vez que estava só em casa.<br />Tentou mais uma vez com um movimento um pouco mais vigoroso. Novamente não obteve sucesso. Levou as mãos à fronte, curvou a cabeça e viu a porta abrir-se espontaneamente. Antes de tentar entrar, espiou pela fresta produzida pela abertura e viu uma mulher sentada ao vaso. A mulher era loira, aparentava pouco mais de vinte anos, usava um longo e alvo vestido de noiva e trazia um buquê nas mãos e chorava olhando para a parede diante de si. <br /><br />Normando desistiu de usar o banheiro e foi pelo corredor até o quarto, abriu a porta que dava para o quintal e decidiu aliviar-se ao pé da figueira centenária, sob a sombra da retorcida copa em noite de luar. Ratazana surgiu através das sombras do corredor, lépida e faceira, abanando o rabo e ansiosa por cheirar primeiro os pés e depois o dejeto fluído expelido pelo rapaz. Ao iniciar o fluxo, o rapaz suspirou com o alívio do desaperto. Porém, antes mesmo de terminar o esvaziamento, foi alvejado por um forte golpe na face. Era um morcego que havia se chocado contra seu rosto. O animal, após o forte impacto, o qual produziu um hematoma na parte inferior da órbita direita de Normando, passou a rastejar pelo chão como que ferido gravemente em suas capacidades sensoriais e motoras. E sangrava profusamente o bicho. Já Normando não sofreu nenhum dano mais grave. Ficou apenas com o rosto intumescido.</span></span><br />
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<span style="color: #990000;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">NORMANDO - CABEÇA, CORPO E DICOTOMIA</span></span></span><br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><br /><br /><br />Normando decidiu que era tempo de desfrutar um pouco o ar puro do campo, aliviar o stress da cidade e esquecer por algum tempo os fantasmas de sua casa. A família possuía uma pequena propriedade herdada de um tio avô, solteirão e suicida, situada entre densos e extensos canaviais. Seria o lugar ideal para tomar um fôlego, sorver da atmosfera livre que há nos lugares mais bucólicos e receber uma porção da paz sertaneja. <br /><br />Veio mais um dos inúmeros dias nos quais amanhecera insone, e então decidiu partir antes mesmo de clarear. Quase atropelou uma mulher e uma criança vestidas de branco e que vagavam pela pista. Na verdade só não atropelou porque os atravessou. Um efeito parecido com o que ocorre quando passamos por densa neblina ou uma cortina de fumaça. Embora as figuras fossem perfeitamente nítidas por de trás do pára brisa; contudo eram apenas tristes espectros. <br /><br />Quando Normando finalmente avistou a propriedade ao pé da estreita e inclinada estrada de chão, o sol já flamejava. Fazia tanto tempo que não ia ao local, que fez um intenso exercício de memória para encontrar a familiaridade adormecida em algum sótão de sua mente de todos aqueles detalhes: a figueira disforme na frente do terreiro, a casinha e o telhado do alpendre mal sustentado por um caibro carcomido por cupins, o fusca azul abandonado debaixo da jabuticabeira e as galinhas empoleiradas sobre o capô e a capota do veículo. <br /><br />No quintal da casa, havia um homem cortando lenha à vigorosas machadadas. Porém o homem não estava lá por completo. Ao menos sua cabeça não estava atada ao corpo pelas vértebras cervicais na base do crânio conforme o convencional. Era um homem incompleto no sentido mais próprio e amplo da palavra. Ia apenas com o corpo até o ápice do pescoço. Porém, muito limpo, não se via nele o menor vestígio de sangue extravasado. Era, por assim dizer, um ser perfeitamente ajustado e saudável, á sua maneira incomum. Mas a cabeça do homem é que era o grande enigma da incomum situação. Onde afinal andaria uma cabeça desprovida de um corpo apto à sua locomoção era intrigante o bastante para corroer as entranhas de toda e qualquer alma, ainda que não fosse das mais curiosas. <br /><br />O corpo sem cabeça cortava um toco, deitava o cabo do machado sobre o ombro e seguia a passos indecisos, tateando o solo em seu redor na busca de mais alguma acha de lenha. Era aflitivo perceber que durante algum tempo fugia-lhe completamente a mínima noção da próxima ação a ser executada. Estacava. Girava o braço livre do machado volvendo a parte anterior do tórax como se procurasse por algo que esquecera. Certamente se apercebera da falta da cabeça, que havia ficado alguns metros atrás. Aquilo incomodava a quem visse. Um corpo sem cabeça e indo em frente e indeciso, coisa mais horrível. Mas é o que acontecia. Era um homem sem cabeça e uma cabeça certamente perdida por aí sem um corpo. Cada qual em um ponto distinto. <br /><br />Claro que o corpo, como sendo provido de suas pernas, levava certa vantagem sobre a cabeça sem membros. Mais tarde e com um pouco mais de observação, ficou claro como funcionava a sociedade dicotômica daquelas personagens surpreendentes: a cabeça era depositada sobre alguma pedra ou qualquer outra superfície plana e ficava ali parada, esquecida no tempo, mergulhada em suas próprias ideias, contemplativa, filosofando, achando certa graça ou falta de graça em tudo a seu redor. A cabeça sempre se aborrecia das ações inopinadamente tomadas pelo corpo. No entanto o que mais a incomodava, chegando até mesmo a enfurecê-la, eram os ataques das formigas cabeçudas. Considerava aquilo, além de doloroso, humilhante. Punha-se aos gritos pelo corpo surdo que, de algum modo sensorial ou extra sensorial, sempre pressentia a cabeça em apuros. <br /><br />Normando nem bem consentira da existência daquela dicotomia e já era assaltado pela figura que surgia subindo pela estreita estrada de chão. Um homem de paletó preto, monóculo e chapéu, e barba longa, e bigode com guias elevadas e curvas. Conversava sozinho e disse que tinha apenas 32 anos e que já era tido como um sábio, embora fosse apenas lido e curioso. Disse, bem lá atrás, e seguiu caminho. Encontrou o corpo solitário em nova tarefa diferente do manuseio da lenha. Ele roçava um pedaço de terra e arrancava do chão algumas ramas de mandioca. Aquilo era um sinal de que o corpo certamente sentia fome. <br /><br />O homem estacou (sim, novamente o termo “estacou”, pois sempre prefiro esta palavra à palavra “parou”; parece algo mais correto e relevante), digo o tal tido como sábio, estacou diante do corpo e fez um cumprimento com o chapéu; algo que lembrou uma leve reverência. O corpo sequer dignou-se a interromper sua faina. Tinha muita fome. Normando retribuiu ao cumprimento. <br /><br />Civilizados por civilizados, cada qual age conforme ache conveniente. Mas o corpo não era de todo néscio. Seguia seus instintos básicos de sobrevivência e aquilo não deixava de ser, de certa forma, um modo inteligente de garantir a existência; ou seja, uma forma ainda que rudimentar e primitiva. <br /><br />Dado certo momento, não sem ser alvo da perplexidade do sujeito tido como sábio, o corpo interrompeu a colheita da mandioca, enxugou o suor do pescoço e seguiu pelo caminho que ainda tinha sobre sua superfície poeirenta as pegadas frescas do suposto sábio precoce. <br /><br />Passados poucos minutos, tempo suficiente apenas para sumir da vista do visitante e ressurgir, vinha subindo o estreito caminho de terra batida o corpo com a cabeça debaixo do braço. Buscou então a sombra de uma figueira e sobre o côncavo de uma das maiores ramas das grandes raízes da árvore, à sombra, depositou sua companheira pensante. <br /><br />Era uma bela cabeça. Tinha o porte de uma abóbora moranga média madura e a forma de uma pequena e jovem jaca. Eu diria não ter nem mais nem menos do que 40 anos de vida. Era um tanto quanto calva. Na face, trazia uma barba principiada a grisalha, contudo sobre a cabeça os brancos fossem ainda bem raros. <br /><br />A cabeça não tinha a mesma ausência de modos do corpo. Era polida em seus modos. E tão logo avistou o visitante e Normando, os saudou com um sonoro e firme “Boa tarde, senhores!”, ao que o visitante, seguido pelo paranormal, retribui numa mistura de perplexidade e respeito. Naquela tarde de sábado, era a primeira vez que o homem tido como sábio tinha consciência de estar diante da dicotomia entre corpo e cabeça. Uma experiência nova e aparentemente rara para ele. Já para Normando a coisa não surpreendia muito.</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com10tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-70598484360445705762014-09-25T16:41:00.000-07:002014-09-25T16:41:38.994-07:00QUEM TEM TATUAGEM É SUSPEITO DE ARRUAÇA E LIBERTINAGENS<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Um parafuso saindo de um casulo, como se fosse um bicho da seda, porém não. Um parafuso. Sim. A criatura metamorfoseada sobre a escápula do rapaz era a peça usada para prender partes em partes e nada tinha da sutileza de uma transformação biológica. Uma das tatuagens mais enigmáticas que já avistei.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">O leitor que por acaso vá correndo os olhos descontraídos por sua linha do tempo e se depare com meu título acima certamente será tomado dos pés à cabeça por um brusco sobressalto, um repelão, um solavanco. Afinal, quem na atualidade é capaz de ignorar que a tatuagem deixou de ser um estigma dos tempos passados para passar à modinha da ocasião? Atualmente, conforme já disse em outro texto, quem não possui nenhuma tatuagem é que é diferente, por assim dizer.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Mas a coisa não funciona bem assim em todos os ermos situados abaixo da linha do equador. Há ainda os nascidos pouco antes ou pouco depois da segunda metade do século que expirou e que fazem questão de evitar papo com pessoas que exponham as marcas artificiais impressas na pele e pagas em diversas parcelas no cartão de crédito.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Em lugares aonde o tórax vai nu e apenas a parte debaixo da vestimenta é de uso obrigatório, lugares como saunas, por exemplo, não há como os tatuados omitirem do seu dorso, dos membros ou do pescoço suas marcas encomendadas.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Arrependidos ou satisfeitos são obrigados a exibir seus tribais, suas caveiras mexicanas, seus nomes de familiares, parentes e amigos, suas rosas dentadas e serpentes coloridas, seus beija-flores e aranhas, golfinhos e distintivos de clubes, e coisas indefiníveis, e coisas indecifráveis, e outras coisas indizíveis até.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Aos olhos do bom ancião conservador, aquele pobre sujeito marcado por vontade própria não merece confiança alguma. Como não podem impedi-lo de entrar nos lugares públicos, esperam que ao menos eles, os próprios tatuados, tenham a consciência e o bom siso de não tentar ingresso nos assuntos que circulam nas rodas de conversa das gentes de bem. Deveriam antes permanecer mudos e arrependidos, reflexivos.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Mas eu presenciei o conflito moral e agora posso tentar trazê-lo à luz (ou treva) da rede social. Ocorreu numa manhã de sábado, no salão de estética. O ancião fazia uma limpeza de pele, enquanto o rapaz tatuado fazia uma vigorosa esfoliação geral deixando à mostra suas costas com o tal parafuso recém saído do casulo.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Naquela ocasião, havia outros dois clientes no mesmo horário. Cada qual travava um assunto. Todos seguiam animados em uma conversa comum. O tatuado bem que tentava se entrosar, porém, toda vez que tomava a palavra, a conversa morria subitamente e os demais clientes apenas entreolhavam-se em uma concordância plena e silenciosa de censura.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">E não era porque o tatuado se saísse mal na conversação não. Falavam de carro, conhecia até os motores. Falavam de pessoas, conhecia todas. Falavam de pescaria, conhecia os rios, peixes e lugares. Mas aquela tatuagem... Aquilo incomodava. Na visão do ancião, aquilo, além de ser uma marca grotesca, era também uma criatura repulsiva. A tatuagem e o rapaz compunham uma simbiose, e que deveria ficar em silêncio. </span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span>Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-37391937549679613162014-09-14T09:27:00.000-07:002014-09-14T15:28:19.133-07:00CASO SEJA ELEITO<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXIr99BZWmUnnTHEDiODGm_65gJgzip7pn19i5ufOd3MLbo7w4xdyB5RW3xv4wqipDxokvoWCP6ncBnKACVG5p2KLAAOe5RxydEkgM1pW7dExlhKq_eLwQXZk-5smm9Lm_b4DiOxIKBzX7/s1600/SDC11319.JPG" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXIr99BZWmUnnTHEDiODGm_65gJgzip7pn19i5ufOd3MLbo7w4xdyB5RW3xv4wqipDxokvoWCP6ncBnKACVG5p2KLAAOe5RxydEkgM1pW7dExlhKq_eLwQXZk-5smm9Lm_b4DiOxIKBzX7/s1600/SDC11319.JPG" height="200" width="150" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Parecia o anúncio de um grande espetáculo circense, mas não era. Um cordão composto por carros estampados com legendas, cores e rostos sorridentes. Como sorriem esses homens! A vida é bela, Benigni! Carros de som estrondam o cancioneiro da moda com paródias que superam o horror do mau gosto das canções originais de apenas um refrão e uma onomatopéia. Caminhões e caminhonetes densamente tripulados desfilam em um contínuo teste de paciência dos amortecedores. Pessoas indo a pé, compondo o cortejo, empunham bandeiras com cores uniformes, trajam camisetas impressas com os mesmos rostos sorridentes estampados nos carros e nas bandeiras. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">O sol está ardente e a principal avenida da cidade repleta pelas gentes. Transeuntes atordoados e, ao mesmo tempo, curiosos, bem como costuma ser comum nos ermos mais pacatos em circunstâncias normais. O ir e vir de um lado a outro pelas calçadas do comércio do centro da cidade é constante. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">A turba tumultuosa chama a atenção pelo alarido que impõe de modo imperioso. Um homem vinha pelo meio da rua transitando no nervo do séquito com os braços erguidos e gesticulando como um maestro regente de toda aquela balburdia insana. O adversário surgia a poucos metros e cumprindo o mesmo trajeto, com um tropel equivalente e algo progressivamente mais barulhento, efeito Doppler, talvez. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Embora se aproximassem bastante as turbas, não se encontrariam jamais. Feito água e óleo que seguem uma substância após a outra por meio de um estreito canal, seguiam-se e repeliam-se, propeliam-se e continham-se, porém, jamais mesclavam suas cores e representações.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Através daquela nefasta folia de candidatos a reis, os postulantes aos cargos públicos digladiavam pelo voto dos populares. Queriam com aquilo provar o merecimento da confiança das gentes e conquistar os acentos nas cobiçadas cadeiras que representam aquele mesmo povo que assisti a tudo com um misto de curiosidade, espanto, indiferença e aborrecimento. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Senhoras passam irritadas e queixosas do barulho inoportuno. Dentro dos estabelecimentos, atendentes e clientes reclamam da dificuldade de comunicação das transações de consumo. O vendedor da loja de calçados diz que aquilo é uma encheção de saco. Um senhor esfaimado pede uma esfirra e um guaraná, porém recebe uma coxinha e uma cerveja. A criança chora assustada e a mãe, irritada, chacoalha a pobre coitada ao invés de afagá-la. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Por outro lado, não obstante, a proposta é de um grande festejo, uma enorme farra democrática. É como se a administração pública brasileira só tivesse o que festejar e o eleitor motivos de sobra para votar cantando e saltitando em seus espetaculares candidatos da vez. Ora, se um pobre diabo entra dançando e cantando para votar, é evidente que será tomado por louco pelos que aguardam pela vez na fila. Porém as gentes que pedem o voto daqueles pobres eleitores nestes exatos e supracitados termos não respondem por loucas jamais e sempre podem recorrer das caluniosas denúncias de improbidade. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Se eu não tivesse já sido inteirado de que a terra é esférica, suspeitaria seriamente de que o mundo está de cabeça para baixo. O bom senso é falta de educação e rabugice. Refugio-me numa loja sob pretexto de comprar um short de corrida. O dono da loja é um velho conhecido meu. Nem bem o cumprimento e já ouço sua queixa do tumulto que passa diante seu estabelecimento. Ele diz que é incrível, mas a cada momento aquela gente eleva mais e mais o som a fim de impor-se mutuamente, e que o ouvido dele não é pinico, e que aquilo é, bem, deixa pra lá, quer saber quanto custa o short?</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Deixo o centro, porém o carnaval segue manhã a fora. Enquanto me afasto, vejo gente conhecida e reconhecidamente desprovida de qualquer inclinação política e ou ideologia partidária empunhando uma bandeira a fim de complementar o ordenado. Já dentro do carro, penso que cada um faz o que pode e que o espetáculo não pode parar.</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-77953323764335052014-09-06T16:15:00.001-07:002015-10-27T12:52:49.421-07:00CAFÉ, MAGREZA E SUSPEITAS <div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Agora estou atrasado. Estaria adiantado, não fosse o ladrão ter aparecido. Entraria no banho vinte minutos mais cedo e, por conseguinte, chegaria também vinte minutos antes do horário ao trabalho, o que seria ótimo para organizar algumas pendências. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Mas então o telefone tocou. Atendi. Era Adélia. Dizia que havia um carro prata, muito parecido com o nosso, da mesma marca, porém doutro modelo, estacionado diante de nossa casa e com um sujeito magro e muito esquisito ao volante. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Bem, minha família acabara de deixar nossa casa em nosso carro e retirou o veículo da garagem passando por de trás do veículo suspeito estacionado à entrada. Atualmente não mora ninguém na casa da frente. A casa ao lado, a da esquina, faz frente pra rua perpendicular à nossa. As outras casas próximas não são de receber tipos estranhos, ainda mais um sujeito magro que aguarde dentro do carro antes das sete horas da manhã de uma quarta feira útil. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">No interior da casa, eu me agito. Os pensamentos aceleram e começam a girar tecendo conjecturas variadas. O café, tomado em jejum, é absorvido pela corrente sanguínea e age como combustível extra ao stress da situação. O pulso ganha velocidade e provoca ardor no coração, progressivamente mais turbulento. As notícias de violências, invasões, assaltos ocorridos em dias comuns de semana, tudo adquiri contorno de real terror. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Pode haver um ladrão sim, bem agora, diante de minha porta, imaginando que a casa tenha ficado desocupada a partir das sete e apenas aguarde o momento exato para saltar do carro e iniciar suas vis ações criminosas. Arrombar a porta e adentrar a casa. Ele não imaginaria haver ali dentro ainda o dono a se preparar para sair uma hora após os demais habitantes do lugar. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Abri a porta da sala e fui até a caixa do correio espiar pela fresta, que oferece uma diminuta faixa de visão da rua. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">E vejo. Vejo o carro prata. Dentro, o tal sujeito magro e muito suspeito. Ele veste uma jaqueta preta com detalhes vermelhos; uma muito parecida com a que o Michael Jackson usou no clipe de Thriller, porém com a disposição das cores invertida. Tem um celular na mão. Olha o celular, depois o aperta na palma da mão, olha novamente. Tudo indica uma espera ansiosa. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Estando a três metros de distância, não vejo o seu rosto nitidamente. Meu campo de visão é limitado. Mas também eu não sou visto do lado de fora. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">As mãos ossudas, mãos inquietas, nervosas e ansiosas, mãos que suponho sejam de um ladrão prestes a executar um crime. São mãos estranhas demais para um homem honesto. E o sujeito está muito ansioso pra alguém que não fará nada de errado. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Por outro lado, pode ser que ele seja mesmo magro por conta de um metabolismo demasiadamente acelerado e não pela ansiedade crônica que o toma antes de cada crime. Conheço pessoas assim. O pai da amiga de minha filha, por exemplo, é um sujeito magro e come feito um desesperado. No entanto, a esta altura, eu já nem sei de nada. Afinal não são os gordinhos que costumam ser ansiosos e comem desesperadamente para satisfazer a ansiedade, e desenvolvem compulsão alimentar, e adquirem problemas com o peso? E pode ser que ele seja de fato um ansioso de longa data e tenha ingerido muito café antes de sair de casa, agravando assim o quadro. Todos sabem que café em demasia causa agitação. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Mas afinal, o que um sujeito tão magro faz parado diante minha casa num horário em que aparentemente todos saíram para trabalhar? É um ladrão. Só pode ser. Ligarei para a polícia. Ligarei para a polícia, já está resolvido. Pronto.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Outro pensamento chega espavorido. A qualquer momento a Rosalma chegará para passar a roupa e acabará pega pelo bandido, que a fará abrir o portão e entrará em casa com ela feita refém. Preciso ligar imediatamente para Adélia e pedir para que avise a Rosalma para não chegar agora, pois estou chamando a polícia e o sujeito parece extremamente perigoso e determinado. A polícia virá e abordará o cidadão que, vendo-se cercado, não reagirá e permitirá sua revista e a do veículo. Encontrarão a arma do assalto e o pé de cabra do arrombamento. Tudo será resolvido. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Adélia entendeu o recado e se comprometeu em contatar a funcionária e alertá-la para que não se aproxime do local onde o roubo está sendo engendrado por aquele abjeto monstro ansioso e descompensado. Rosalma estava a uma quadra de distância e ficou aflita com o recado, paralisada. Disse que aguardaria nova ligação para saber se já poderia chegar ao trabalho. Quis prender Adélia ao telefone, mas Adélia tinha já cliente e tinha que desligar para continuar o trabalho, mesmo que tensa. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Vou mais uma vez até a caixa do correio e observo o criminoso. Não posso ver de modo algum o seu rosto, mas aquelas mãos... Aquelas mãos não deixam dúvida. Aqueles dedos longos estão se aquecendo para aprontar as piores ações concebíveis por aquela mente doentia. Ele é magro demais para ser honesto e inocente. Mário Prata certamente concordaria comigo e teria absoluta certeza de tratar-se de um ladrão feroz e ainda notaria outros indícios que não alcancei em minhas observações turvas pela adrenalina da situação extrema.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Ligo para a polícia, porém não me identifico. Narro toda a situação e o cabo fala com um soldado enquanto me pergunta sobre a aparência do sujeito e de como ele está vestido. Há um agitamento perceptível do outro lado da linha. O cabo pede para que o soldado deixe o arrombamento para depois e vá primeiro tratar de minha denúncia. Pede pra que eu diga mais uma vez o endereço e confirma que será enviada uma viatura, que por sinal já se encontra nas imediações. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Percebo que minha descrição do que via causou uma reação elevada no policial. Será que o que eu disse confere com a aparência do arrombador que está sendo procurado logo cedo? Será que aquele estado de agitação é normal no policial, que pode ter passado a noite em rondas e ocorrências de seu plantão e que, sob efeito de muito café, já não contêm sua ansiedade por estar muito pilhado? </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">A polícia não vem logo e decido ir mais uma vez ver se o sujeito desistiu do crime e evadiu-se do local. Porém ele permanece lá, com suas mãos nervosas e agitadas. Os minutos assumem a forma de uma eternidade. Tomo uma arma em punho e decido que haverá luta. Agora sou eu ou ele. Não há como fugir da verdade humana. Somos todos selvagens. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Há barulho na rua. Talvez a polícia o tenha abordado e já o tenha algemado. Vou mais uma vez até a fresta da caixa do correio. O carro ainda está lá. Porém o sujeito deixou o local. Conversa agora com meu vizinho da direita, o que sempre está viajando. No estante seguinte, ambos passam no carro do meu vizinho e o carro do suspeito é deixado diante de minha casa. O mistério parece solucionado. Pelo modo e tempo pelo qual conversaram amigavelmente, trata-se de um conhecido do vizinho. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Agora posso tomar meu banho em paz, mas ainda tenho que ligar avisando para que Adélia avise Rosalma de que está tudo em ordem; também ligo para a polícia e aviso ao cabo que tudo não passou de um mal entendido. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Entro no banho e ouço o abrir do portão. Rosalma já está em casa e iniciou seus trabalhos. Preparo-me para sair. Deixo o quarto e encontro Rosalma na sala, passando as roupas. Pergunto se recebeu o recado e digo que está tudo bem agora. Ela diz que já sabe e que o carro que está lá fora é do filho de uma irmã da igreja. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Parto para o trabalho num passo apressado, já estou atrasado. No meio do caminho, tenho um sobressalto. Afinal, quem é que pode garantir que meu vizinho, Rosalma e o filho da irmã da igreja não fazem parte de uma terrível quadrilha de assaltantes?</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com10tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-39203992064659533792014-08-14T16:09:00.000-07:002014-08-31T09:51:41.766-07:00A CAMINHO DE CAFARNAUM<div style="text-align: justify;">
<span style="color: blue;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">A ESTALAGEM </span></span></span><br />
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"> Era uma tarde quente e com um sol de estorricar qualquer cristão desprovido de abrigo sombreado. Lavado em suor, o viajante avistou uma estalagem à beira do caminho e imediatamente rumou para lá. Ao adentrar o estabelecimento, encontrou o estalajadeiro por de trás do balcão longo, alto e espesso, em mogno, fazendo uma refeição com o prato na palma da mão direita e um garfo tortamente empunhado com a esquerda. Era um homem robusto o estalajadeiro, ruivo e dotado de sobrancelhas densas e furiosos olhos verdes.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Preciso de um aposento, senhor. Estou na estrada há dois dias e careço demais de um bom banho e lençóis limpos sobre uma cama fresca, por favor.”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“O senhor é paulista?”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Sim.”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Aceita linguiça?”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Não, obrigado. Mas se o senhor tiver um aposento, ficarei muito grato. Preciso de um banho, e é urgente!”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Elga, leve este homem ao 13. Tá limpo lá, menina? O senhor não tem mais bagagens, além dessa mochila? Estranho isso! Tá indo pra onde?”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Cafarnaum. Passei no concurso público e a vaga saiu pra lá.”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“O que o senhor faz?”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Sou professor. Dou aula de literatura.”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Ah, professor... Mas não vai dar certo não, viu? Sua vida não tá dando certo.”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Como assim?”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Sua vida, oras. Ela não tá dando certo.”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Mas o que é isso?! O senhor é vidente por acaso?”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“A coisa é mais séria do que você imagina, meu amigo. Elga, pare de rir menina boba e vá levar este homem ao 13 logo de uma vez. Não vê que o sujeito quer descansar?”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Por aqui, moço.”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Não tendo outra opção, o viajante acompanhou a moça ao aposento que lhe fora indicado.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“O que você é dele?”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Sobrinha.”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Porque tá rindo?”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Sua cara, moço, o senhor não imagina sua cara quando o tio falou aquelas coisas.”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“O seu tio é mesmo vidente?”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Não sei. Se é, nunca contou pra ninguém.”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Mas justo agora ele tinha que dar uma de adivinho?”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Aqui é o 13, moço.”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Obrigado! Ah, mais uma coisa: servem jantar aqui?”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Não. Só café da manhã, a partir das seis. Mas o senhor pode pedir comida pelo telefone. Tem os números dos serviços de entrega sobre o criado.”</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Elga era muito alta e tinha o sorriso solto. Seus olhos eram duas pedras opalescentes e sua tez era branca como nuvem e contrastava com o tom de cevada de seus cabelos longos. Ao deixar o viajante diante o apartamento número 13, ela saiu pelo corredor saltitando feito uma grande criança. O hóspede notou cair-lhe um objeto metálico do bolso de trás da calça. Adiantou-se para fazer a cortesia de apanhá-lo para a moça, porém esta imediatamente voltou o passo ao ouvir o tilintar do objeto no solo e dirigiu-se afoita para ele. O viajante pode ver do que se tratava e ficou sobressaltado pelo visto. Achou melhor duvidar de sua visão. Elga tomou o par de algemas prateado e não prestou qualquer indício de satisfação, apenas continuou seu caminho e desapareceu pelo corredor.</span></span><br />
<br />
<br />
<br />
<span style="color: blue;"><span style="background-color: blue;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="background-color: white;">BANHO DE FOGO</span></span></span></span></span><br />
<br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="color: blue;"><span style="color: black;"> O chuveiro era poderoso e esguichava água com alta pressão e grande abundância. Havia dois registros: um seria para água aquecida e o outro para fria. No entanto, o melhor mesmo era manter apenas na modalidade fria, pois ao abrir minimamente o registro de água quente a temperatura da água era tão alta que seria capaz de queimar a pele em um segundo. E queimou. Queimou parte da face e do pescoço no recuo do homem. Ele gritou. Disse um palavrão estendido ao máximo que pode. Ficou irritado e decidiu que reclamaria na recepção. Tomou o telefone e viu que alguém estava na linha antes mesmo de qualquer discagem. E quem estava lá não estava só, conversava.<br /><br />“Ele é meio aparvalhado. Tem medo de perder o emprego, mas não dá um jeito na vida. Disse pra todo mundo que tá desesperado, mas não muda aquela cara de tonto, aquele jeito sonso, aquela expressão de contínuo sono.” <br />“E você acha que seu tio o manda embora mesmo?”<br />“Claro.”<br />“Que pena! Eu fico com tanto dó.”<br />“Fica nada. Você fala assim mas não tá nem aí. E nem deve ligar mesmo. Ele é muito lerdo.”<br />“Elga! Como você é ruim.”<br />“Tá. Depois a gente se fala. Agora eu tenho que atender o cliente do 13, que tá n alinha ouvindo a gente faz tempo. Pois não, senhor.”<br /><br />No sobressalto de ser surpreendido espionando, o viajante, imediatamente, deitou o telefono no gancho sem dizer qualquer palavra. Voltou para o banheiro e observou no espelho que a queimadura havia produzido apenas intensa vermelhidão em sua faça e uma pequena bolha no pescoço. Deu o caso por encerrado e terminou seu banho frio, quando ouviu alguém bater à porta. Não esperava por ninguém, mas achou que deveria ser a sobrinha do estalajadeiro para saber se desejava alguma coisa.<br /><br />“Quem é?”<br />“Hans, o seu vizinho aqui da frente, do 14.”<br />“O que o senhor deseja, seu Hans?”<br />“Falar com você, ora!”<br />“Só um momento que vou vestir-me. É cada uma!”<br />“O que disse?”<br />“Um momento. Vou vestir-me!”<br />“Claro, claro. Vocês jovens não perdem uma oportunidade pra esquisitices. Ficar pelado dentro do quarto e desacompanhado. Aonde é que já se viu um troço desses? Ainda bem que não temos um incêndio por aqui hoje, ao menos até o momento.” <br />“Pois não, senhor, desculpe a demora. Mas em quê posso ajudar?”<br />“Preciso de fósforos, ou um maldito isqueiro. Quero acender o meu cachimbo e não há uma brasa dos infernos pra que eu faça essa belezinha aqui funcionar.” <br />“Lamento, mas não fumo.”<br />“Não fuma? Tem certeza?”<br />“Claro que sim. Não fumo e jamais fumei em toda a minha vida.”<br />“Ah, não fuma não, é? Mas e drogas, não fuma drogas?”<br />“Senhor, isso é alguma brincadeira?”<br />“Não. Pareço estar brincando? Não. Jamais brincaria com assunto tão sério. O senhor é paulista, não é?” <br />“O senhor já desceu na recepção para procurar seus fósforos?”<br />“Essa hora? Você deve ser maluco. Aqui, agora, só amanhã, meu filho. A sobrinha do estalajadeiro deve estar se preparando pra chibatar aquele desocupado do namorado dela até o imbecil desfalecer. Diversão mais esquisita a deles! E os gritos então? Ainda não ouviu, não é? Espere até um pouco mais tarde e verá que é impossível pegar no sono antes do infeliz parar de apanhar e gritar.”<br />“O senhor não repare, mas eu preciso fazer uma ligação. Com sua licença.”<br />“Ligação?”<br />“Com licença, senhor. Até logo!” <br /><br />O viajante fechou a porta e foi sentar-se na cama para tentar entender o que estava acontecendo. O hospede da frente ficou parado diante a porta fechado por algum tempo antes de retornar para seu próprio quarto.</span><br /> </span></span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com22tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-12392133770784866172014-07-26T14:10:00.004-07:002014-07-27T09:20:39.643-07:00A VOLTA DO GRANDE CIRCO NONSENSE - AMÁCIO MAZZAROPI<div style="text-align: justify;">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhJ8L3InCWNd7YxDtlVvzfwR_cjPIzbv94yakTdgqcfcUgfq7FVTuQ9tZQdInez0kDsUMG9xDCiyXkZ67b9lwPYX0DbwSDIEwQMhVx2dzJshf5N7tQV0x1um8mxe_amqAsqC8EnKOmRNZ9T/s1600/foto0786_001.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhJ8L3InCWNd7YxDtlVvzfwR_cjPIzbv94yakTdgqcfcUgfq7FVTuQ9tZQdInez0kDsUMG9xDCiyXkZ67b9lwPYX0DbwSDIEwQMhVx2dzJshf5N7tQV0x1um8mxe_amqAsqC8EnKOmRNZ9T/s1600/foto0786_001.jpg" height="200" width="150" /></a></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">AMÁCIO MAZZAROPI</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">No rosto do homem, a inexpressão dominava suas feições limitadas, fixas e absolutas e um tom parvo se impunha a tudo que o interpelava. Mas o timbre de sua voz contradizia de certa forma a ausência de expressão e brevidade de comunicação. Olhava as pessoas em sua volta, retribuía ocasionalmente algum cumprimento formal, respondia alguma pergunta simples, hora através de um breve sim e outrora através de um breve não. Mas tanto o advérbio concordante como o discordante eram ambos proferidos firme e secamente. Definiam perfeitamente a vontade natural do homem. Cabia tão somente aos seus cuidadores acatar ou desacatar seu desejo manifesto.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">E era justamente nos momentos de tomada de decisão entre fazer a vontade do homem ou descumpri-la que sua cuidadora mor e também esposa merecia um olhar mais curioso. Ela gabava-se o tempo inteiro por cuidar muito bem do homem, pois dizia que ele era um homem bom a vida toda, bom marido, bom pai e por aí ficava. Ele era bom. Não era ótimo nem excelente. Mas era bom e apenas bom. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Ele está comendo com a própria mãozinha. Precisa ver que gracinha. E ele aprendeu a fazer manha. Se for outra pessoa que vai pra dar comida pra ele, ele enrola e não come. Trava a boquinha ou então fica um tempão com qualquer coisinha mastigando, mastigando, mastigando sem fim. Aí venho eu e ele come cada pratada de comida que dá gosto. Precisa ver que belezinha!” </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">E o homem realmente, apesar de a mulher dizer que se alimentava muito bem, emagrecia a olhos vistos. Uma coisa impressionante. Amanhecia com o porte de uns setenta quilos. Pela hora do almoço, já havia disposto de uns quinze quilos, no mínimo. As roupas vestidas após o banho matinal sobravam em seu corpo ao termino da mesma manhã. No final da tarde, mais uns vinte quilos de massa haviam se esvaído de suas carnes como por encanto, simples tal qual evaporação. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Após o jantar, no final da tarde, antes mesmo do cair da noite, alimentavam-se sempre muito cedo, costume dos tempos de roça, lá estava o homem, uns quarenta ou cinquenta quilos mais magro do que iniciara o dia; era uma verdadeira incógnita se ele realmente chegaria ao dia seguinte com alguma carne cobrindo os ossos. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Eu vou te falar uma coisa e é perigoso o senhor não acreditar. Eu já levei esse coitadinho em tudo que é médico daqui. Teve um doutor que disse que isso é da doença dele mesmo. E que, por ele não se mexer quase nada, aí vai ficando assim mesmo, magrinho, vai murchando tudo, atrofiando. Eu não sei mais o que fazer. Mas eu tenho muita fé em Deus e Nossa Senhora de Aparecida. À noite, eu rezo, rezo, rezo... rezo a noite inteirinha. Quando é pela manhã, bem cedinho, aí o senhor precisa ver, quando é bem cedinho ele já tá outra vez fortinho, com as carninhas todas cobrindo os ossinhos dele e tudo. Uma gracinha! Aí vem o resto do dia e vai a gente sofrer tudo de novo. Uma judiação!” </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Seria sempre por volta da meia noite o momento mais aflitivo. Exaurido de forças e esvaído de carnes, o homem estertorava e estridulava sobre a cama até parecer não ter mais energia nem mesmo para atravessar aquela hora que traria a madrugada seguinte. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Aí vem a enfermeira da noite e dá pra ele uma vitamina, de colherinha em colherinha, e ele arriba outra vez”. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">O homem novamente transformava-se diante olhos e bocas estupefatas que quisessem testemunhar o estranho fenômeno de recomposição física. Pelo início da manhã, ficava até difícil transportá-lo na cadeira de banho até o banheiro para os primeiros cuidados no início do dia, de tão recomposto que ele se encontrava.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Ela gosta muito dele. Ela faz de tudo pra agradar ele. Se for preciso, ela tira dela mesma pra oferecer pra ele. Já faz quinze anos que ela tá com a gente. De primeira, ela era empregada aqui. Aí, quando ele ficou doente, eu precisei de alguém que me ajudasse no banho dele e ela se dispôs. Depois precisei de ajuda pras trocas dele e pra dar os remédios na hora certinha. Ela tem a cabeça muito boa. Não esquece de nada e é muito atenciosa. Ela até fez curso de enfermagem e agora, além de ajudar aqui em casa, ela também trabalha no hospital de enfermeira. Ele gosta muito ela”.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">A moça era caprichosa e sabia que o enfermo gostava ou havia algum dia gostado muito do Mazzaropi. Fazia sempre agrados temáticos ao patrão. Certa vez, ao visitar parentes, veio de Minas com um chapéu de palha de presente e introduziu a peça no vestuário do patrão. A patroa não recusou o agrado e permitiu seu uso diário. Noutra ocasião, enquanto pagava algumas contas no centro da cidade, em horário de almoço, a moça avistou em uma vitrine uma calça verde em corte social e uma bela camisa xadrez quadriculado em tonalidades de vermelho e azul. Não teve dúvida. Comprou para o patrão e fez o agrado. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">O cinto e a botina foram fáceis de conseguir. Ele sempre gostou do estilo roceiro e sempre usou tais peças em seu vestuário, tinha ambas em seu guarda roupas, esquecidas dentro de caixas. A enfermeira foi e resgatou-as. As novas aquisições sim eram novidades. A calça verde pula brejo e a camisa xadrez, mais o chapéu de palha foram peças que deram uma mudada em seu estilo de proprietário rural e reforçaram um traço típico caipira. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Logo seus cabelos brancos foram tonalizados ao ponto de escurecer tornando-se negros como as penas do anu, o mesmo ocorreu com seu fino bigodinho. O detalhe é que em posse de suas faculdades administrativas de si mesmo o homem jamais havia usado barba e ou bigode. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">O acaso fez das suas e tratou de dar acabamento ao personagem. Certa vez, em uma fria manhã de inverno, veio então, da roça, um antigo compadre, a fim de visitá-lo. Trouxe consigo uma prenda, um rolo de fumo goiano, que enrolado em seu braço envolvia e escondia o membro inteiro do visitante. O enfermo recebeu o presente e ninguém impediu o uso. Era um gosto antigo dele o de mascar fumo e pitar cigarro de palha. Algo que a esposa só revelou à enfermeira na ocasião na qual surgiu o tal presente pendurado na parede da varanda. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Gosto de enfermo é coisa que não se nega. Afinal, a vida é uma só e que mal pode haver em ter um prazer bobo onde abundam tantos desprazeres inevitáveis”, pensava a esposa com outras palavras. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">A vida seguiu com suas peculiaridades. O homem, vestido tal qual seu suposto ídolo da televisão, emagrecia durante o dia, assistia ou não assistia aos filmes do comediante, mascava o fumo picado e depositado em sua boca para que não ficasse nervoso, como a esposa dizia. Cuspia no chão, conforme conseguia, escorrendo pela boca. Pitava um cigarrinho só, da mão da própria esposa, e emagrecia até dar meia noite, para então engordar em companhia da enfermeira prestimosa e dedicada até o amanhecer. </span></span></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">A enfermeira passou a chamá-lo de Mazzaropi, como um modo descontraído de dirigir-se ao patrão. Mas a esposa, muito dada às formalidades do trato, não via aquela intimidade com bons olhos. Quando surpreendia a moça em tal gracejo, a corrigia de imediato e retificava que o nome do marido era Amácio, e que assim ela deveria chamá-lo. Em confidência aos filhos, estudava a possibilidade de demitir a moça por postura inadequada. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">“Onde é que já se viu ficar chamando o pai de vocês de Mazzaropi. Que coisa mais sem graça!”</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com41tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-17253244845749481832014-05-01T12:32:00.002-07:002014-09-03T16:47:21.274-07:00THE SMITHS, O CONTO<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="color: red;">OS SMITHS</span><br /> </span></span><br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Toda aquela casa abrigava sombras em suas paredes, em seus cantos mais ocultos, debaixo dos móveis e tapetes, nas frestas das tábuas, nos rodapés, no escorrer dos peitorais e batentes, nos vãos das janelas e das portas, nos ralos, nas tomadas, nas gavetas, nas pessoas. Mais tarde, bem mais tarde, o cenário ficaria conhecido para muito além de Manchester. Algum dia alguém concluiria ser melhor demolir aquele monumento ao horror e o demoliria. Então acabaria de uma vez por todas com o abrigo de sombras e interromperia a morbidez dos curiosos. <br /><br />Todos, naquela casa, sofriam com as loucuras mórbidas e omitidas. Sofriam ativamente, ou passivamente, mas ninguém estava livre das sombras frias e opressoras tomando a tudo e a todos. Ali, na época dos acontecimentos, os dias passavam sem que houvesse oportunidade para que as crianças brincassem ao ar livre e fossem simplesmente pessoas normais, felizes. Eram crianças tristes, tímidas e introspectivas. Quando não na escola, em casa, eram praticamente confinados aos seus pequenos quartos. Restava a ambas apenas os devaneios e jogos solitários como únicas formas de distração. Assim sendo, não demoraram a apresentar os primeiros sinais decorrentes da violência a qual estavam sujeitas.<br /><br />Manchester das sombras era distante de tudo que fosse alegre e florido. A maioria ali só pensava em trabalhar durante a semana nas indústrias para então poder se embriagar no final de semana, feito máquinas que se lubrificam. A família Smith, aparentemente comportada em sua casa aquecida, era, na verdade, uma associação da mais horrenda desestruturação. Algo inimaginável a quem olhasse do lado de fora das tábuas. Padrasto embriagado e libidinoso, mãe sedada e frígida, filhos assustados e sem referência de um comportamento mais saudável e adequado.<br /><br />Enquanto Hindley se distanciava cada vez mais do mundo, o mal se instalava pouco a pouco no coração de Brady. Ele sentia a efervescência da revolta crescer cada vez que percebia os movimentos truculentos do padrasto contra sua mãe, no quarto ao lado. A mulher nunca queria, mas sempre era usada como um pedaço de carne viva. E o homem nunca se satisfazia por completo. Sempre lhe restava energia para mais alguma visita a outro cômodo da casa após a mulher adormecer sob o efeito de álcool e fortes sedativos. O homem costumava dizer que a pequena Hindley tinha o sono agitado e que a faria dormir. Noites infelizes e intermináveis eram aquelas.<br /><br />Os inexplicáveis e perturbadores ruídos abafados que vazavam do quarto da pequena Hindley angustiavam e sufocavam o confuso e atordoado Brady, que nada entendia, porém sentia-se ainda pior do que quando o padrasto estava sobre sua mãe. Ficava exausto, sem forças nem mais para tentar entender o que de fato acontecia ou odiar tudo aquilo. Encolhia-se envolto em pavor e angústia e, às vezes, chorava até o sono tomá-lo ou o dia amanhecer; qual viesse primeiro.<br /><br />Quando feito dia, sentava-se à beira da cama e ali permanecia durante longos minutos a ver a escassa luz permear as entradas possíveis e salpicar a grotesca sombra, que se retraia, recuava e escondia-se quando tocada pelos fótons. Naqueles amanheceres, quando não percebia sinal de vida vindo do quarto dos adultos, torcia para que eles estivessem mortos e tudo aquilo que não entendia findasse de vez.<br /><br />Era hora de sair e ir para a escola. Nem sempre Hindley conseguia levantar-se facilmente. Brady ia até sua cama e lhe empurrava no ombro avisando ser já hora de partirem. Hindley se colocava sentada e inexpressiva. O irmão tinha que ajudá-la a sair da cama e vestir-se. A menina amanhecia com os lençóis e roupas sujos por estranhas manchas. Vez ou outra havia sangue. Seria o nariz da menina que sempre sangrava quando ela demorava a dormir pelo tal sono agitado, o qual, curiosamente, apenas o padrasto percebia. De pé, ao dar os primeiros passos, o que às vezes era algo sofrível, pois a menina sentia dores nas pernas e nos quadris, Brady a apoiava até que Hindley conseguisse por si mesma sustentar-se.<br /><br />A caminho da escola, em algum momento, sorriam e até brincavam. Eram oito quarteirões de reconstituição de ânimo. Nas calçadas quadriculadas, Brady ensinava a irmã a contar cada quadro pisado como um ponto. No começo, ela nunca queria participar do jogo, nada dizia. Seguia o irmão apenas andando com seus grandes olhos azuis fixos no nada e margeados por sombras remanescentes da casa. Pouco a pouco, a menina reencontrava motivos para sorrir das peripécias do irmão. Próximos à escola, ambos já caminhavam ao mesmo passo.<br /><br /><br /><br /><br /><span style="color: red;">FANTOCHE</span></span></span><br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="color: red;"> </span><br />Era comum na escola Brady não conseguir prestar atenção à aula. Passava grande parte do tempo olhando fixamente pela janela ou debruçado sobre a carteira. Nos intervalos, passava o tempo observando seus colegas no pátio, enquanto aqueles estivessem distraídos. Seu conforto era quando encontrava Hindley e então lanchavam juntos.<br /><br />Eram frequentes as reclamações por parte das professoras, as quais sempre diziam que Brady, apesar de inteligente, era desatento e apático, um preguiçoso. Enviavam bilhetes à mãe, os quais sempre retornavam assinados, porém nenhuma convocação de reunião era atendida pelos responsáveis.<br /><br />Numa manhã, seguida por uma noite das mais angustiantes, Hindley não conseguiu levantar-se para ir à aula de modo algum. Brady, após muito insistir para que a irmã reagisse, decidiu deixá-la dormindo. Iria mesmo só. Aquela manhã na escola fora uma das mais tumultuadas de sua passagem pelo ensino fundamental. Agrediu um colega de sala, agrediu a professora de matemática, que tentou intervir, agrediu a inspetora, que veio a seguir aos berros. Terminou suspenso. A mãe, que havia trabalhado durante a noite toda no pub e tirou o dia para dormir, assinaria o comunicado da suspensão sem nem mesmo ver do que se tratava. <br /><br />Com o papel na mão agitando-o ao vento, o caminho de casa parecia mais longo do que sempre para o garoto. Ao passar diante de uma casa, Brady viu um pequeno cão branco com manchas pretas que ladrava por de trás de um portão estreito e de grades. Lentamente aproximou-se do bicho. O cão fez um recuo e continuou latindo. Brady enfiou o comunicado no bolso e retirou do outro o pão com carne oferecido na merenda da escola. Ele levava aquele lanche para a irmã.<br /><br />Com o pão na mão, Brady conseguiu prender a atenção do animal. Para onde ele movia o pão o cão seguia com o olhar e a cabeça, e já não mais latia. O garoto retirou um pequeno pedaço do lanche e lançou ao cachorro, que o abocanhou imediatamente.<br /><br />Brady notou que o portão da casa não estava trancado de fato. Moveu o trinco e empurrou apenas o suficiente para dar passagem ao animal. Recuou um ou dois metros e lançou mais um pedaço do pão. O cão hesitou um pouco em princípio, porém não resistiu; atravessou o portão e foi até o pedaço do lanche. Usando continuamente o mesmo artifício Brady conseguiu fazer com que o cãozinho lhe acompanhasse por duas quadras e meia.<br /><br />Vendo que seu recurso se esgotou, o garoto decidiu que seria o momento de finalizar o plano. Abaixou-se diante do cão e ofertou o punho quase fechado. O cão se aproximou e começou a farejá-lo. Num repente, Brady saltou para cima do animal e trouxe-lhe junto ao peito firmemente atado em seus braços. Daí em diante disparou numa corrida eufórica pelas poucas quadras restantes com o cachorro seguramente contido contra si.<br /><br />O cão chegaria em casa já com um nome escolhido pelo garoto e seria um presente para Hindley. O nome do cão era Fantoche. A menina aprovou o cão e o nome, e demonstrou grande contentamento em recebê-lo.<br /><br /><br /><br /><br /><span style="color: red;">TOMORROW</span><br /><br />Era mais de meio dia e a mãe de Brady e Hindley ainda dormia. Maggie era garçonete em um pub, porém havia dois dias que não ia ao trabalho e passava o tempo inteiro trancada no quarto enfumaçado, sob a cama, sob efeito de vodca e sedativos, dormindo e fumando. <br /><br />Maggie teve Brady ainda na adolescência. Ela tinha apenas 16 anos quando o garoto nasceu. A identidade do pai de Brady nunca foi conhecida com certeza, porém Maggie afirmava que o pai era um repórter que trabalhou por uma temporada em Manchester, e que ele teria morrido um mês antes de o garoto nascer. Hindley, três anos mais nova do que o irmão, seria fruto de um relacionamento casual de Maggie com um viajante, um vendedor de peças automotivas de uma firma sediada em Londres, mais um caso de paternidade duvidosa. Sendo assim, Maggie sempre conservou seu sobrenome de solteira e o transmitiu aos filhos. <br /><br />John, o padrasto, havia saído no meio da manhã sob pretexto de procurar emprego nas fábricas para na verdade afogar-se em garrafas de rum e retornar apenas no início da noite, cambaleante. Ao chegar, John costumava cochilar e, em seguida, cometer suas torpezas rotineiras. O homem só não espalhava o terror pela casa quando se excedia na bebida a ponto de desmaiar até o dia seguinte. O que era sempre um alívio para os Smiths.<br /><br />As crianças conseguiram manter Fantoche escondido debaixo da cama de Brady por mais de três dias. Às vezes o cão latia um pouco, porém logo era calado pelo garoto, que, apavorado, o detinha com seu travesseiro abafando o som do animal. O padrasto, sempre tomado por tontura e torpor alcoólicos, não ouvia o bicho e continuava desmaiado. <br /><br />Mas aquela situação não duraria para sempre conforme era possível se prever. No início da noite daquele dia, John retornou mais ébrio e iracundo do que de costume. Aquilo era o prenúncio de mais uma noite angustiante, uma na qual Hindley sentiu mais dor do que sempre e gritou mais alto do que nunca. Fantoche então disparou a latir. Como Brady mantinha a cabeça debaixo da coberta e do travesseiro não consentiu perceber o cão latindo de seu quarto em direção ao da irmã. Após algum tempo com o cão ladrando, cessaram os sons da garotinha e fez-se silêncio. De repente, debaixo da atmosfera esmagadora daquela casa, a porta do quarto de Brady abriu-se violentamente. O garoto não se moveu debaixo de seu isolamento acústico. Fantoche voltou a latir e rosnar para o grande homem de meias e cueca que rompeu a passos largos e cambaleantes através do portal. John viu o cão e começou a gritar ofensas ao bicho e principalmente ao garoto. Então Brady deixou seu isolamento e, trêmulo, sem perceber, urinou no colchão. Sentiu o conforto da urina que aquecia seu colo. Fantoche continuou latindo de debaixo da cama. John recuou e no instante seguinte retornou calçado de suas botas.<br /><br />O homenzarrão empreendeu uma breve perseguição ao pequeno animal. E após encurralá-lo num canto, seguiu com uma longa sessão de pontapés. Minutos depois, o cão agonizava ensanguentado por todas as cavidades e orifícios. Minava o fluido vital enquanto expirava. Hindley surgia lívida na porta do quarto do irmão. Ela foi até o animal e, com dificuldade, tomou-o em seus braços dirigindo-se para seu próprio quarto. John acusava o garoto por todo aquele transtorno. Dizia que ele era um marginal igual deveria ter sido o porco de seu pai que emporcalhou a porca de sua mãe, dizia entre os dentes e com ódio no olhar.<br /><br />Em seguida, insatisfeito e furioso, o violento John partiu para cima do garoto e fez com que ele sofresse como jamais havia sofrido até então. Manchester amanheceu mais nublada que de costume e as sombras daquele domicílio não permitiram que a mínima partícula de luz ali penetrasse. Apesar de todos os estrondos, não se sabe como, Maggie levantou-se somente pela manhã e nada perguntou sobre os rumores da madrugada. Ao encontrar o cão inerte e ensanguentado ao lado de Hindley, decidiu partir às pressas com as crianças para casa de sua irmã Nancy, em Glasgow.<br /><br />Com muita pressa, arrumava duas malas médias. Porém, John despertou e inquiriu do motivo daquela arrumação repentina. A mulher não conseguia responder ao inquiridor e rompeu numa crise de choro. O homem disse que aquilo era pela falta das medicações e que aquelas crianças estavam mesmo impossíveis, de enlouquecer a qualquer um. Apanhou um frasco de sobre o criado de cabeceira de Maggie do qual retirou diversos comprimidos e disse para que ela os tomasse, e que aquilo lhe acalmaria. Vendo que a mulher não reagia, tomou-a pelos cabelos e a fez engolir um a um todos os comprimidos que julgou conveniente. Minutos depois, Maggie dormia mais uma vez e John saía pela porta da rua a fim de pelos bares embriagar-se novamente.<br /><br /><br /><br /><br /><span style="color: red;">MANCHESTER TO GLASGOW</span></span></span><br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="color: red;"> </span><br />Coração de criança é mesmo teimoso. Resiste em esperança, mesmo quando tudo apresenta uma face contrária. É a natureza infantil quem alimenta essa crença de que tudo pode melhorar. Mas na vida dos Smiths, o tempo passava e Maggie não reagia, não tomava uma atitude quanto às atrocidades de John. A mulher até pensava, tentava tomar uma medida, porém era vencida pelo medo, pela falta de energia, pelo comodismo. Ela e seus filhos eram reféns daquela criatura sórdida e violenta, daquela situação indigna.<br /><br />Até que um dia, na semana na qual Brady completou onze anos, ela, que na ocasião frequentava o trabalho assiduamente, com as poucas economias de gorjetas que conseguiu reunir, decidiu ir para Glasgow sob pretexto de tirar férias. John, como era de se esperar, teve uma reação das mais violentas. Ficou furioso, ensandecido. Segurava a cabeça da mulher por entre as mãos e inquiria do motivo de ela estar querendo fugir dele. A mulher negava por entre súplicas, lágrimas e explicações atropeladas que queria deixar John, porém o homem só crescia em violência e fúria. Surrou Maggie com socos no topo da cabeça até que ela desfalecesse ao lado da cama por falta dos sentidos.<br /><br />As crianças se trancaram no quarto de Brady assim que o tumulto começou e ali o irmão orientou para que a irmã permanecesse em silêncio e usasse do isolamento acústico que ele criara como forma de transcender aos horrores da casa. A menina chorava e expressava sua preocupação para com a mãe. Mas Brady dizia que ficaria tudo bem e que logo tudo voltaria ao normal, e eles poderiam sair dali e ficar juntos da mãe.<br /><br />John afastou-se vendo a mulher desfalecida no quarto e caminhou até a sala contígua, sentou-se no sofá com uma garrafa de rum e fumou um cigarro. Tomou meia garrafa em grandes talagadas direto do próprio gargalo. Acalmou-se por algum tempo. Em seguida, ergueu-se e caminhou até o quarto da menina. Brady esforçava-se para não ouvir o ranger das tábuas sob as botas do padrasto.<br /><br />Vendo que a menina não se encontrava em sua cama, o homem foi direto ao quarto do enteado. Primeiro John tentou abrir volvendo a maçaneta. Viu que a porta estava trancada pelo lado de dentro. Advertiu para que o garoto abrisse e disse que precisava conversar com eles.<br /><br />O garoto não respondeu. Os irmãos continuaram com as cabeças cobertas conforme estiveram durante o período de maior turbulência. O padrasto advertiu mais um tanto e passou a fazer ameaças às crianças. Vendo que não era atendido, John mudou de atitude e ficou extremamente agressivo. Disse que derrubaria a porta caso não a abrissem imediatamente e começou a dar com o punho na mesma. Hindley urinou por medo.<br /><br />John esmurrava e chutava a porta das crianças com algum cuidado para não atrair a atenção dos vizinhos. Fazia para intimidá-los de modo que apenas eles ouvissem e temessem. O garoto jurou à irmã que não abriria sob ordem alguma, e que o padrasto poderia até mesmo derrubar a porta que eles não sairiam do isolamento. Ficaram em total silêncio com as cabeças abafadas. Ficou tudo quieto. O homem parecia ter saído pela porta da rua. Aguardaram por um tempo razoável e decidiram sair. Certificaram-se de que o padrasto não os aguardava do lado de fora do quarto. Aparentemente ele havia saído. Brady sempre tomava a frente das ações, Hindley o seguia. Foram até o quarto da mãe e a encontraram acordada, porém deitada e chorando muito, aos soluços. Os filhos viram com espanto que a mãe tinha um grande hematoma no entorno de seu olho direito. Ela os abraçou e pediu perdão. Eles retribuíram os abraços e recolheram suas lágrimas, beijaram-na. <br /><br />Vendo as crianças tão aflitas, Maggie disse que tudo ficaria bem e pra que elas lhe ajudassem com as bagagens o mais rápido possível. Minutos depois, partiam. Pegaram o que foi possível e sob grande apreensão. Já na rua, a passo rápido, aos arrancos trazia a pequena Hindley ao passo. A mulher olhava para trás o tempo todo, e só repousou quando sentiu o movimento do trem a caminho de Glasgow. Finalmente estavam seguros.</span></span><br />
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"> </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="color: red;">SOMBRAS EM GLASGOW</span></span></span><br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="color: red;"> </span><br />Em Glasgow, os Smiths foram bem recebidos pela irmã e o cunhado de Maggie. Nancy era enfermeira na maternidade do centro da cidade, enquanto seu marido, Hoffman, um homem bom, calmo e afetuoso, estava desempregado naquele momento. Porém era um competente confeiteiro e também postulava o cargo de pastor efetivo na igreja luterana, na qual atuava como pastor auxiliar havia dois anos. Eles não tinham filhos. Tinham sim a intenção de realizar a adoção, no entanto tudo dependeria da melhora das finanças. O momento não era bom. Por mais que Nancy trabalhasse, seu salário bastava apenas para o aluguel e as despesas básicas da casa. <br /><br />Embora Maggie não tivesse revelado os verdadeiros motivos pelos quais deixara John e Manchester, as sombras persistiam sobre os Smiths como uma pecha permanente por onde quer que fossem. Ela apenas dizia à irmã que estava cansada do companheiro e da vida que levava em Manchester, das bebedeiras do homem, da cidade. A irmã, obviamente, intuía a circunstância de as coisas não irem nada bem por lá. As crianças eram muito introspectivas e Maggie também buscava isolar-se o quanto possível. Nancy e Hoffman comentavam sobre o estranho comportamento da mulher e dos sobrinhos. Maggie passava o dia todo trancada no quarto, fumando, e com as crianças por perto; parecia não ter disposição para nada, como bem notou o cunhado. <br /><br />Ao término da primeira semana, Nancy sentiu-se obrigada a revelar qual era o momento financeiro que atravessavam e em seguida tentou animar a irmã a procurar algum trabalho provisório na cidade, caso pretendesse prolongar sua estadia por mais alguns dias. Então a segunda semana transcorreu de maneira relativamente mais natural. Maggie não teve dificuldade em conseguir um trabalho temporário durante o dia numa lanchonete do centro, nas proximidades da maternidade na qual Nancy trabalhava. Logo deu início ao processo de transferência dos filhos para um colégio local. As crianças ficaram um pouco mais soltas na companhia do tio. Vez ou outra, até saiam do quarto para ver um pouco de televisão e ajudavam com pequenas tarefas na preparação de algum confeite encomendado que surgisse. <br /><br />Contudo, logo Hoffman percebeu que o comportamento das crianças não era antinatural somente no modo recluso de portarem-se, mas principalmente nas estranhas manias que ambos apresentavam. Por mais de uma vez, Hoffman surpreendeu Brady enquanto o garoto brincava de modo estranho com o siamês da casa, o Chuvisco. O gato tentava de todas as maneiras escapar do garoto, porém era contido pelo rabo enquanto o menino lhe puxava as orelhas de modo brusco e repetitivo. O tio explicava que o animal não gostava daquilo e poderia até mesmo arranhá-lo. O menino deixava o brinquedo vivo e voltava emburrado para o quarto, só saindo do local quando a mãe retornava do trabalho ou para fazer alguma refeição. <br /><br />Hindley não preocupava menos o tio. Ela sempre aparecia com arranhões no ventre dos antebraços. No início, o tio achou que fosse por também brincar de modo brusco com o bichano, contudo jamais flagrara qualquer ato agressivo por parte da menina para com a criação, para quem a pequena tinha apenas carinhos e afagos. Foi então que passou a observar a criança com maior atenção e pode ver que a menina usava pequenos objetos para coçar a pele do antebraço produzindo os arranhões que logo se tornavam sulcos. Para tal a criança utilizava pequenas moedas, tampas de caneta e até mesmo pedriscos. A menina também acordava no meio da madrugada aos gritos. A mãe dizia que aquilo era terror noturno e que a criança já estava medicada e com acompanhamento médico em Manchester para conter os episódios. A cama na qual dormiam os dois irmãos sempre amanhecia urinada. A suspeita do problema logo recaiu sobre a pequena Hindley, no entanto bastou providenciar um colchão para Brady para ficar claro que não era Hindley quem sofria de enurese noturna.</span></span><br />
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="color: red;">MENTIRA MISERÁVEL</span></span></span><br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="color: red;"> </span><br />Após quinze dias da permanência de Maggie e as crianças em Glasgow, John passou a visitar a casa dos cunhados quase todos os finais de semana. Se no começo era recebido com certo receio da parte de uns e frieza da parte de outros, logo conseguiu estabelecer uma relação cordial para com os cunhados e dúbia para com a mulher, que a cada dia ficava mais confusa e insegura quanto ao acerto e firmeza de suas últimas decisões. Já as crianças sempre pioravam o comportamento na semana que seguia às visitas do padrasto. <br /><br />John dizia que estava e parecia realmente estar transformado. Pedia outra chance em nome das coisas boas que aconteceram entre eles, pois achava que nem tudo havia sido tão ruim que não valesse a tentativa de um reinício. Momento no qual a mulher permanecia em silêncio, contudo ouvia com atenção, apesar de vez ou outra o olhar vagar sobre as sombras do passado recente. <br /><br />Embora em um primeiro momento John parecesse a quem o visse ser predominantemente seco, era um homem charmoso. Magro e alto, ele tinha o rosto longo e o nariz afilado, longos cílios e grandes olhos castanhos escuros, e seus cabelos também eram castanhos e ondulados formando um discreto, porém denso topete. Vestia muito bem os trajes sociais adquiridos em brechós de bairro. Tinha a voz grave e suave, bem marcante. Articulava bem a fala e economizava ao extremo nas palavras. Escolhia cuidadosamente os vocábulos. <br /><br />Maggie jamais se esqueceu da noite na qual o conheceu de fato. John tornara-se frequentador assíduo do pub no qual ela trabalhava. O homem sempre ofertava generosas gorjetas acompanhadas de incisivos e maliciosos gracejos. Certa noite, ele disse que era capaz de retirar suas roupas íntimas ali mesmo ao lado da mesa sem que ela derrubasse uma única gota dos drinques que trazia sobre a bandeja repleta de copos transbordantes. Naquela noite, ficaram pela primeira vez. John aguardou até que Maggie terminasse o trabalho. Enquanto eles saíam, a moça desculpava-se por estar vestindo apenas trapos. Ele disse que era mesmo horrível que alguém tão bela tivesse preocupação com tais coisas e que a proposta feita dentro do pub valia para qualquer lugar. <br /><br />Foi um namoro breve e intenso o deles. Ao cabo de apenas um mês, Maggie se mudara do quartinho de aluguel onde morava com alguma bagagem e as duas crianças pelas mãos para o número 16 da Wardle Brook Avenue. Cheia de esperanças e motivação, foi viver em companhia do surpreendente John. Naquela ocasião, ele era empregado em uma transportadora e bebia moderadamente nos finais de tarde e de modo mais intenso nos finais de semana. Fumava também com moderação e evitava o consumo de tabaco dentro de casa. A bebida fez com que ele perdesse alguns dias de trabalho e a bebedeira veio junto com o período de desemprego. Passou a consumir álcool diariamente e revelou seu lado mais impaciente e impulsivo. As coisas pioraram muito quando teve que vender o carro pelo qual tinha verdadeira veneração. Ele sempre culpou Maggie por seu declínio financeiro e moral, cada vez de modo mais violento, agressivo. E foi assim que a mulher encontrou-se, pouco a pouco, como quem descesse uma longa escadaria sem corrimão, cada vez mais depressiva e dependente de álcool e sedativos.<br /> </span></span><br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Nas visitas que John fazia aos Smiths, em Glasgow, sempre levava presentes para todos. Estava bastante sociável e comunicativo. Aparecia bem trajado, perfumado e barbeado. Dizia que deixara a bebida e até pretendia frequentar alguma igreja. Nos momentos em que se via a só com Maggie, dizia estar muito arrependido de todo mal que seu gênio impulsivo havia lhes causado. Ele parecia falar de uma entidade que o aprisionou e atormentou e que agora dela se libertara como por encanto. <br /><br />John comprou um belo furgão e disse que agora eles poderiam passear com frequência por todo o Reino Unido, e levava-os a passeios ao centro de Glasgow e esforçava-se por agradar as crianças com doces, brinquedos e sorvetes. Brady relutava em aceitar qualquer coisa oferecida pelo padrasto, que dizia compreendê-lo e que aquilo era por força da idade, dos hormônios aflorando. Hindley já era mais receptiva aos mimos do homem, enquanto Maggie, pouco a pouco, cria no sonho de serem novamente uma família, no entanto agora estruturada e feliz. Foram tantas as visitas bem sucedidas que um dia a mulher, embora advertida pela irmã de sua precipitação, decidiu ceder às promessas de John e assumiu o compromisso de retornarem todos para Manchester assim que fosse concluído o ano letivo das crianças.</span></span><br />
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="color: red;"><span style="background-color: white;">HAND IN GLOVE</span></span> </span></span><br />
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Ao chegarem à cidade de Manchester, no final da tarde daquela sexta do retorno, John disse que tinha um xerez guardado na dispensa e propôs uma pequena comemoração à Maggie, que questionou da importância do abstêmio não ceder à tentação do primeiro trago. O homem riu em tom de zombaria e afirmou que a vida não poderia ser resumida apenas a trabalho e preocupações, e que era preciso vez ou outra dar uma relaxada para melhor suportar a imensa quantidade de aborrecimentos cotidianos.<br /><br />Deixaram as crianças à própria sorte e adentraram o velho e sombreado quarto de paredes cinza do casal. Minutos depois, John e Maggie dirigiam-se para o carro dizendo que dariam uma volta em busca de mais bebida e que logo retornariam. Recomendaram para que as crianças se recolhessem em seus respectivos aposentos e já fossem dormindo. Hindley quis chorar e Brady fechou o cenho. Com os imensos olhos azuis marejados e sem dizer nenhuma palavra, a menina suplicava com todo o seu ser para que a mãe não a deixasse. Maggie beijou ambos e seguiu seu homem com algum pesar antigo e toda resignação de sempre. <br /><br />A noite vinha com um insinuante e intenso luar e o clima estava especialmente fresco naquela ocasião. A caminho da loja de bebidas, John propôs um passeio pelas redondezas de Saddleworth Moor sob pretexto de contemplar o luar e também procurar uma luva que teria perdido por ali durante um frete que realizou atravessando aquela região na véspera. <br /><br />Ao chegar à proximidade de uma charneca, John estacionou o carro no acostamento e disse para que Maggie fosse até o porta-malas e de lá apanhasse uma lanterna enquanto ele vestiria a jaqueta preta de couro. Ela teve um imenso sobressalto ao tatear o porta-malas não iluminado sem encontrar nenhuma lanterna, porém apenas os nítidos contornos do que seria uma grande e espessa pá. Ficou indecisa entre perguntar qual era a utilidade daquele objeto ou apenas dizer a John que não havia encontrado a lanterna. Sempre temendo que qualquer coisa enfurecesse o homem como nos não tão velhos tempos, optou por não dizer palavra alguma. Ficou parada com os olhos sobre ele.<br /><br />John já se encontrava do lado de fora do carro, encostado à porta e trajando a jaqueta de couro, e com a lanterna em uma das mãos e um cigarro apagado na outra, ambas calçadas por brilhantes luvas pretas de couro. Colocou a lanterna debaixo do braço e levou um cigarro à boca com uma das mãos para acionar o isqueiro com a outra. Maggie ficou lívida aparentando refletir o luar e sentiu seu sangue evaporar pelas têmporas como se os sentidos se esvaíssem acompanhando a fumaça do cigarro do homem. Este fixou os olhos firmes e impiedosos sobre os da mulher e apenas indagou em uma palavra o motivo dela tê-lo abandonado uma vez. <br /><br />O espírito de Maggie se esvaía a cada segundo. Ela estremecia e continha o choro iminente. Não apresentou reação alguma. Era como se ela conhecesse desde o início de seu retorno qual seria o seu destino final. Pensava na sorte das crianças e sua cabeça girava cada vez mais aérea, gasosa e veloz. Até que num instante fora arrebatada pelo violento choque da chapa de metal contra o flanco direito de seu crânio. Sentiu o sangue evaporar-se num primeiro momento para em seguida escoar pela imensa fenda aberta ao céu. Percebeu o calor do líquido que fluía e cobria aquecendo sua face gélida, tudo em uma fração de segundo. Vieram muitos outros golpes em seguida, os quais ela nem mais sentia, pois apenas o primeiro já fora suficiente para impulsionar a translação completa. <br /><br />John cavou uma cova rasa e em seguida descalçou as longas botas marrons de salto dos pés da mulher. Tirou seu casaco azul de veludo e também a calça branca justa. Cuidadosamente removeu as peças íntimas, que eram azuis e contrastavam com a pele alva da vítima. Retirou o colar de contas brancas e os brincos de opalas ocultados em suas madeixas loiras. Ao lado do furgão, foi possível ver uma sombra furiosa montar a figura jaz quedada inerte ao solo e, em uma breve sessão de movimentos frenéticos e convulsivos, um espectro devorar o outro de modo selvagem e definitivo.</span></span><br />
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="color: red;">NUM LEITO RASO</span><br /> </span></span><br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">John voltou para casa em estado de completo êxtase. Cantava e dançava dentro do carro. Com os vidros abaixados e o vento açoitando o rosto, agitava o braço para fora da janela e gritava frases de canções alegres. Gritava bem mais alto do que o som do rádio. <br /><br />Ao chegar ao número 16 da Wardle Brook Avenue, ao estacionar o furgão, o homem notou luzes acesas no interior da casa. Deu um soco no volante e desceu do veículo furioso. Rompeu pela porta da frente aos gritos contra as crianças. Dizia que eram uns delinquentes e que não sabiam acatar a mais simples das ordens, e que era para estarem dormindo havia muito tempo. Em seu furor e êxtase não se deu conta do sangue que tingia a gola e o peito de sua camisa branca por debaixo da jaqueta. Os Smiths se entreolharam com os olhos a saltar das órbitas. <br /><br />Brady ignorou as palavras furiosas do padrasto e partiu para cima dele com socos e pontapés inúteis contra a horrenda criatura, enquanto Hindley gritava desesperadamente. O garoto não surtia qualquer efeito sobre o homem, que logo o tomou pela gola da camiseta dizendo que lhe daria uma lição para que jamais esquecesse. O menino queria saber da mãe, queria matar o padrasto, queria ter forças para ferir, queria poder qualquer coisa. Tomado pela gola da blusa era arrastado na direção do quarto do casal. Volveu a cabeça e conseguiu cravar os dentes sobre o punho direito de John. O homem gritou em fúria e largou o garoto, que correu para a cozinha e tomou um pequeno cutelo de culinária. Não hesitou em partir para cima do grande homem, porém aquele tomou o utensílio da mão do menino com a facilidade de quem toma um brinquedo de uma criança. Em seguida, John passou a desferir violentas cutiladas contra o crânio do garoto, que caiu ao lado da pia e logo foi abrigado por um lago vermelho e espesso. <br /><br />No furor dos fatos, John não percebeu o quanto Hindley gritava de terror. A menina estava estacada diante à cozinha e presenciara toda a cena do embate entre o monstruoso homem e seu tão caro e valente irmão. Quando o padrasto foi em sua direção dizendo que a acalmaria e que acabaria tudo bem, a menina encontrava-se cataléptica diante o irmão repousado no lago sobre o chão da cozinha.<br /><br />John tomou a menina nos braços tal qual um pai zeloso e rumou para o quarto do casal a fim de depositá-la no leito. Passou a elogiar a criança atônita. Acariciava os seus cabelos e dizia que ela sim era a jóia dos Smiths, a única jóia dos Smiths. Depositou-a sobra cama e saiu dizendo que ainda tinha um trabalho a realizar, mas voltaria em um momento. <br /><br />Com o puído tapete marrom da sala envolveu o corpo do garoto e o depositou na traseira do furgão. Munido de panos e rodo, rapidamente fez desaparecer a grande mancha do chão da cozinha e sobre o local colocou um tapete redondo e branco de barbante. Nem bem terminou o trabalho ouviu soar a campainha. Era o comissário de polícia. Queria saber se estava tudo certo por ali, pois havia recebido uma denúncia por parte da vizinhança sobre gritos e tumulto provenientes do local. John vestia agora um suéter azul e recebeu o policial placidamente. Convidou-o para que entrasse e tomasse um lugar no sofá. O oficial entrou e recusou o convite a sentar-se. John ofereceu chá. O oficial também recusou e agradeceu. Em seguida perguntou quem mais morava naquela casa. John explicou que moravam ele, a esposa e as crianças. E disse que todos dormiam naquele momento, exceto o casal, e que ele estava preparando um chá para a mulher, e que foi justamente quando também ouviu um tumulto, porém nitidamente vindo da região sul, e acrescentou que era comum aquilo acontecer por aqueles lados. O oficial olhava em todas as direções e nada lhe pareceu suspeito. Ele não passou da sala. A mobília era mínima e tudo já se encontrava em perfeita ordem. John perguntou se o homem queria falar também com a mulher. O oficial disse que não seria necessário, despediu-se e partiu. <br /><br />John voltou entusiasmado para o quarto e de lá saiu somente uma hora depois. Pegou as chaves do furgão e rumou para Saddleworth Moor. Cantava pelo caminho todo, agitava-se. Em outra localidade distante da qual esteve horas antes com Maggie, ele estacionou o furgão e retirou de trás o corpo do garoto envolvido no tapete. Retirou também a pá e cavou outra cova rasa. Desenrolou o menino, desvencilhou-o de suas vestes, debruçou-o sobre o pequeno monte de terra removida depositado ao lado da cova e começou a mover sua sombra grotesca sobre a sombra inerte do garoto. <br /><br />Percebendo que a temperatura do corpo do menino ainda estava conservada, supôs que Brady ainda vivia. Naquele momento teve então seu furor triplicado. Ergueu-se sob a lua, tateou o amontoado das vestes do garoto e retirou do sapato do menino o cadarço. Prendeu o fio firmemente pelos dois punhos e envolveu o pescoço de Brady. Sua sombra movia-se freneticamente sobre a sombra do garoto, que parecia a sombra de uma marionete com apenas a cabeça e o tronco atados por fios enquanto os braços balançavam largados à própria sorte. Aquilo durou a eternidade de três minutos. <br /><br />Com as roupas e os calçados aos pés, finalmente Brady descansava em paz no repouso de seu módico leito em Saddleworth Moor.</span></span><br />
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><br /><span style="color: red;">SUFFER LITTLE CHILDREN</span><br /> </span></span><br />
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Por três longos dias e longas noites Hindley esteve sob os auspícios do padrasto. A criança alternava períodos de choro com períodos de catalepsia. John a enfeitava com seu único vestido branco de festa e dizia que ambos eram realmente como pai e filha, uma linda família, e dizia que sempre passeariam juntos nos finais de tarde e que todas as outras meninas de sua idade a invejariam. <br /><br />Na terceira noite do suplício, atormentado pelo choro constante da criança, John disse a Hindley que a levaria para ver Maggie e Brady e que era lindo o lugar onde eles a aguardavam. A criança já não mais existia em um plano coerente e resistia na forma de uma tênue e delicada sombra de si. Sua alma aguardava sequiosa por uma libertação divina. Tudo que restava era o sonho confortante da fuga daquela existência para assim finalmente desvencilhar-se daquela sombra monstruosa que se apossara dela e dos seus por completo. <br /><br />John rumou mais uma vez com grande alegria para Saddleworth Moor. Aquele lugar sempre revitalizava sua disposição e robustecia sua sombra. Conhecia por discretas características memorizadas cada sítio onde estivera antes com os Smiths. Tinha uma fabulosa memória fotográfica o homem. Em um dado momento, pouco antes de chegar à região do túmulo de Maggie, John fez com que a menina passasse do banco de trás do veículo para o banco da frente, a seu lado. <br /><br />Durante todo o percurso Hindley olhava pela janela, observava as estrelas e a lua e chorava baixinho. O padrasto escolheu outro lugar que não os anteriores para estacionar o furgão. Hindley, conforme o homem providenciara, vestia seu vestido branco de festa e usava ornamentos de conchinhas nos cabelos, pulseiras delicadas e seus melhores sapatos, que também eram brancos. Seus olhos azuis habitavam o fundo de um longo túnel de sombras tornando-se quase imperceptíveis. Suas madeixas loiras emolduravam a tez translúcida de um anjo encarnado. <br /><br />A sombra do homem movera-se grotescamente como das vezes anteriores. Ele consumava os assassínios com seu ato mais torpe. O tempo escorreu mais atroz e longo que das vezes anteriores. A sombra de John não se satisfazia de modo algum. Com as próprias mãos o homem cometeu o ato que cumpriu sua intenção e traiu seu desejo libertando o anjo de debaixo de si para a eternidade em um terno suspiro aliviado. <br /><br />Adormecida para o mundo e acordada para o cosmo, Hindley teve seu repouso sagrado em mais uma cova rasa de Saddleworth Moor. Adormeceria ali para sempre sem jamais ter seu sono incomodado pelas inúmeras buscas errantes que perscrutariam cada palmo daqueles pântanos e charnecas sem obter sucesso na busca de seus restos mortais e os de seu irmão. Apenas o cadáver de Maggie seria encontrado alguns meses depois e no entorno da área de Azevim Brown Knoll.<br /><br />Nancy, tenaz e obstinada, buscou diligentemente junto à polícia resposta para o desaparecimento completo dos pequenos Smiths e encontrou apoio no grande clamor popular pela total solução do caso. Com o conjunto das evidências a perícia criminal do Departamento de Polícia de Manchester conseguiu colocar John na cena do crime e, embora ele jamais tenha confessado qualquer um dos assassinatos, isso fora o suficiente para incriminá-lo. John foi sentenciado à pena de prisão perpétua e esteve em diversos presídios, até ser considerado pela justiça um psicopata irrecuperável, sendo então transferido para um manicômio judicial. <br /><br />Para por fim ao intenso movimento dos repórteres e curiosos vindos em visita de diversos lugares do Reino Unido e outras localidades, o Conselho de Manchester decidiu por demolir o número 16 da Wardle Brook Avenue em Hattersley sem, no entanto, jamais conseguir eliminar as sombras do local.</span></span></div>
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Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com59tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-39500859311633709222014-01-31T14:06:00.000-08:002015-10-27T12:57:40.037-07:00GRANDE ELENCO – SIMPLES COMO UM OVO OU UMA BOMBA NUCLEAR<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgQjv9JIY07zy3llUqjLcjuSjt0LE7SjpdHSJ_tu9LE9QW2bUMEOkg51PpHbjF6qpijVjvWcbAM7kKlnpg8stuoW6yuRwTl-bXk5qLoMqapA4ncx2y9FsTYMgwxl660idJRy7rfaalpPfvH/s1600/SALVAMENTO+DO+CHIPE+DE+1+GIGA+2013.05.18+223.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="150" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgQjv9JIY07zy3llUqjLcjuSjt0LE7SjpdHSJ_tu9LE9QW2bUMEOkg51PpHbjF6qpijVjvWcbAM7kKlnpg8stuoW6yuRwTl-bXk5qLoMqapA4ncx2y9FsTYMgwxl660idJRy7rfaalpPfvH/s1600/SALVAMENTO+DO+CHIPE+DE+1+GIGA+2013.05.18+223.jpg" width="200" /></a></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Não era a primeira vez que ele a atendia, e nem era a primeira vez que se detinha diante às imagens dos quadros da sala. Mas era a primeira vez que ela concordava em sair do quarto, da cama, para ser mais exato, para uma pequena caminhada pelo corredor, passando pela sala e indo à sacada do sobrado. <br /><br />Então eles iam passando diante às tais imagens da sala, quando ele comentou, a fim de nutrir a empatia, o que é indispensável numa sessão de Fisioterapia, que eram belas as imagens. Uma, numa tapeçaria emoldurada em madeira escura e coberta por vidro, como um quadro; nela havia a imagem das ruínas do ataque nuclear à Hiroshima, o Memorial da Paz de Hiroshima, ou Cúpula da Bomba Atômica. São as ruínas do Antigo Centro de Exposição Comercial da Prefeitura de Hiroshima, ruínas da construção mais próxima ao epicentro da bomba nuclear a permanecer parcialmente de pé após o ataque, transformado num símbolo em memória às vítimas de 1945. Uma imagem fortíssima, que, sem dúvida, induz a refletir quanto ao significado daquilo tudo para aquele casal de japoneses idosos residentes naquela casa, que receberam a trágica notícia aqui no Brasil. Ela olhou a gravura e nada disse: "Morreu muita gente lá". <br /><br />Dois passos à frente, pararam novamente. Agora diante um quadro em tinta guache, no qual se via a imagem do Monte Fuji. Ele reconheceu a imagem e perguntou se era mesmo o famoso monte, ao que ela respondeu que sim e acrescentou: “Eu estive lá.”. Ele demonstrou admiração e interesse pelo fato e perguntou do quanto seria belo presencialmente. Por um momento, ela nada acrescentou ao seu comentário. Fez uma pequena pausa. Alinhando-se no andador, tomou fôlego e, inclinando a cabeça para melhor olhar o quadro, entrou por outra vertente: “Lá eles cozinham ovo com o calor que sai do chão”. “Interessante!...”, disse o fisioterapeuta. “Eu comi ovo lá”, ela completou. “E era bom?”, perguntou o rapaz. “Era ovo”, disse ela, e seguiu para completar o curto trajeto até a sacada.</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com28tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-36810791108626021372014-01-27T16:39:00.002-08:002014-05-20T19:32:21.189-07:00KB - LUCKY STRIKE - OS FAMÉLICOS GALOS INFELIZES<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEit_4AXPMfxIXmrJHLKMRAVSaeCsYCJqTm8vc1MWHZwdzYuGczN3KLLI4zFMt0fN212Uwf3qTeGKn4f2JFm9b2GNEA9wcJISOt5NBxjmSI7nfk4W2tl_Rqz6hRSBY4swzzM95gohzhIDPcl/s1600/Foto0484.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEit_4AXPMfxIXmrJHLKMRAVSaeCsYCJqTm8vc1MWHZwdzYuGczN3KLLI4zFMt0fN212Uwf3qTeGKn4f2JFm9b2GNEA9wcJISOt5NBxjmSI7nfk4W2tl_Rqz6hRSBY4swzzM95gohzhIDPcl/s1600/Foto0484.jpg" height="200" width="150" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Ele chegou dois dias antes do dia marcado para o encontro. Pensou em tomar um banho, cochilar um pouco e depois rever o seu plano. Fazia muito calor naquela manhã. Faria mais ainda à tarde. Não conseguiu desligar por minuto que fosse. Embora o corpo pedisse por algum descanso, o colchão poeirento e os pernilongos não permitiam. A cama, toda frouxa, balançava muito ao mínimo movimento. Decidiu não vestir-se e descer o colchão ao chão, cobri-lo com a toalha úmida na qual se secou, mas não adiantou. O calor o fazia aquecer a toalha úmida em poucos minutos com sua abundante transpiração e seu pequeno ventilador giratório preso junto à parede da cabeceira da cama produzia mais ruído do que vento. <br /><br />Irritou-se. Sentou-se nas ripas do estrado descoberto. Pensou em ir à janela fumar um Lucky Strike, mas decidiu não ir. O plano era bem outro. Ficaria incógnito até o dia do encontro. Já havia calculado descer ao refeitório para o café na manhã do dia seguinte e de lá mesmo pediria as refeições pelo telefone do hotel em alguma bodega das proximidades. Deixaria tudo combinado e acertado previamente. Falaria com o magricela da recepção, o cara da cara seca e cheia de bexigas. Daria uma gorjeta ao figura. <br /><br />Na tevê, apenas o canal religioso e uma infinidade de missas pra tudo que é necessidade, crime, pecado e gosto. Anoiteceu enfumaçando e olhando as paredes brancas e observando a movimentação de suas habitantes dominantes, esguias damas de oito pernas compridas e donas de inúmeras armadilhas engenhosas plantadas em cada canto e orifício do vestíbulo. Rente ao bocal de luz, por exemplo, uma trama de pequenos esqueletos de insetos esgotados até a última gota pendia como um suvenir de numerosas caçadas bem sucedidas. <br /><br />Apagou a luz, deixou a janela um pouco aberta para que entrasse alguma brisa noturna, porém não adormecia. Parecia impossível. Uma vez tendo em conta vencidas as adversidades animais e climática, quando o sono e o cansaço pareciam principiar pequena vitória, vinha um sobressalto do susto causado pelo estrondo de enormes máquinas ruidosas. O estrepito de pneus gigantes rolando no asfalto, coletivos a cada dez ou quinze minutos, cada vez mais velozes ao cair da noite, sendo que, muitas vezes, vinham até três seguidos, o despertavam a cada breve cerrar de pálpebras. <br /><br />E umas tantas motos de escapamentos barulhentos urravam rua abaixo conclamando desordem e decretando a impossibilidade da paz. Também carros com sons a todo volume estrondando funks repetitivos como se todos emitissem uma mesma e única música também contribuíam para a desordem sonora e atordoamento dos sentidos. <br /><br />Mas em um dado momento o transporte público encerrava suas atividades febris e os motoqueiros e motoristas desordeiros encontravam algum bar ou boca de fumo para acalmar a sanha de ver o mundo em chamas de uma vez por todas. <br /><br />Aí a fauna local ressurgia em seu esplendor noturno. Alguma casa vizinha ao hotel mantinha uma rinha desativada de decrépitos galos no quintal. Eram os galos cantores mais infelizes e melancólicos que ele já havia ouvido na vida. O canto dos galos sucedia-se em diversas lamúrias em direção ao seu quarto, à sua janela, e sempre soava como um lamento de bicho cego e idoso, carcomido por artrite, penitente de dores por todo o corpo, sem galinhas, famélico e sem esperanças. "É um canto de mau agouro", ele pensou. <br /><br />Havia também uma infinidade de cães e uma imensa variedade de tipos de latidos nas imediações. Hora os bichos latiam em revezamento, outra hora sobrepunham latido a latido com notório esforço dos histéricos menores em suplantar o ladrar dos maiores. Esganiçavam-se os pequenos. “São os mais irritantes em sua mediocridade e ignorância da própria insignificância”, pensou ele; “todos muito histéricos e imbecis”, completou. Latiam para todo e qualquer maloqueiro que se perdia para cima ou para baixo da rua. Latiam uns para os outros. Latiam por ruídos que o ouvido humano não capta. Latiam para espectros que o olho humano não vê. Latiam por tédio. Latiam por ira. Latiam por mágoa. Latiam por solidão e desespero. <br /><br />“Pena que só tenho facas e não tenho uma arma para abrir fogo contra esses malditos cães em suas respectivas casas”, concentrou-se no canto triste dos galos até amanhecer insone.</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-50635467209339222942014-01-20T14:25:00.003-08:002014-01-20T16:32:24.010-08:00KB - HOTEL DO COMÉRCIO<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhbp9xOplRXRlilc-mBUlaJc9llrto_Yhq_TennwHZdzaXUu7-e_nqGB6akxMfL-ZEz7a53bUABRVTwnBeyr_XCTbBywaXqhz00Z9_jwa88c4k7N2LDGh6HLrN-aZ0d7Iuye2SOM5_Sx5Rl/s1600/Foto0483.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhbp9xOplRXRlilc-mBUlaJc9llrto_Yhq_TennwHZdzaXUu7-e_nqGB6akxMfL-ZEz7a53bUABRVTwnBeyr_XCTbBywaXqhz00Z9_jwa88c4k7N2LDGh6HLrN-aZ0d7Iuye2SOM5_Sx5Rl/s1600/Foto0483.jpg" height="200" width="150" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Sem mais esperar, desviou-se de suas próprias dúvidas e incertezas, meteu a mochila nas costas e seguiu caminho, a pé, até a rodoviária. A passagem estava comprada desde a véspera. Não havia motivo para desistir de seu intento e abandonar o planeado. Já estava tudo escrito. Chegando o momento certo, teria finalmente a aguardada oportunidade da vingança. O ônibus partiria as vinte e três e quinze, conforme previsto. De Matheus Lacerda à Casa Violácea, seria viagem para dez horas ou mais. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Além da muda de roupa que trazia no corpo, constituída por calça jeans preta e camisa xadrez em preto, azul e branco, preparou trocas para apenas uma semana. Calçava macios sapatos pretos de pelica. Dentro da mochila, também colocou um par de tênis próprio para corrida, com amortecedores e bem leve, pois poderia ser útil numa eventual fuga. Enroladas em camisetas pretas estampadas com bandas de rock, levou consigo três facas virgens de lâminas bem afiadas, a ponto de cortar papel. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Era certo que ninguém o revistaria. Não é prática das empresas de transporte rodoviário a rotina de revistas. Além do mais, ele não era em nada suspeito, tinha aparência comum: branco, sobrepeso, um tanto quanto calvo frontalmente, orelhas bem separadas, aparentava recentes quarenta, barba rala, óculos de armação preta e lentes grossas, estatura média, também era desprovido de tiques e ou cacoetes, sorria fácil e tinha o olhar razoavelmente inteligente, um aspecto todo gentil, perfeito cidadão pacato e mediano. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Até Cidade do Sudeste, fez viagem razoavelmente confortável. Apenas seu braço esquerdo viajou um tanto quanto retraído; hora colado ao tórax, hora cruzado com o direito, hora disputando o braço móvel de separação entre as poltronas. É que a ocupante de sua poltrona vizinha era obesa e restringiu um bocado seu espaço durante o percurso. A mulher roncava e eliminava gases quase que o tempo inteiro, concomitantemente. Com o ar condicionado ligado e, claro, todas as janelas fechadas, faltou pouco para que ele achasse ser o caso de abrir uma das janelas de emergência. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Ao trocar de ônibus no terminal rodoviário de Cidade do Sudeste, viu subir a bordo três policiais militares, que certamente iriam trabalhar em Casa Violácea, mas isso não o afligiu e nem perturbou em nada; viajou sozinho em poltrona dupla. Desembarcou no meio da manhã do dia que seguiu ao de sua partida, uma bela manhã colorida e de sol resplandecente. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Ao colocar o pé no terminal rodoviário, sentiu que teria problemas para encontrar um bom hotel onde pudesse organizar o plano e continuar sua meditação. Pedintes e hippies circulavam a intervalos pelo terminal e, ao tentar informar-se de como faria para tomar um táxi, vários mendicantes o abordaram de modo inquisitivo. Com grande dificuldade, desvencilhou-se da horda de pedintes e adentrou o primeiro táxi que viu estacionado na fila. Disse apenas para que o chofer seguisse em frente e somente quando deixou o terminal pediu para que o conduzisse a um hotel limpo e de diárias justas no centro. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Até quem não era do local perceberia claramente que o taxista desdobrava-se em cabriolas inúteis pelo trânsito confuso antes de finalmente estacionar à porta do soturno Hotel do Comércio com vários quilômetros registrados em seu taxímetro. E não levou muito tempo para perceber que o Hotel do Comércio ficava justamente ao lado do terminal rodoviário. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Durante o tortuoso percurso, a cada semáforo que paravam, uma turba tumultuosa desdobrava-se em milhares de artifícios por algum trocado. Em cada lugar um novo talento o assaltava a atenção. Eram malabaristas, vendedores de balas, portadores de necessidades especiais malabaristas e vendedores de balas, cuspidores de fogo, vendedores de água, artistas performáticos, gente fazendo artesanato com canivete em longas folhas de capim verde...</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Ao saltar diante do hotel, fora interpelado por um grande contingente de pequenos famintos de caras sujas e mãos direitas estendidas e espalmadas a esperar por alguma moeda da providência divina. Tinha a nítida impressão de que permanecer por mais tempo na rua seria o mesmo que oferecer-se em sacrifício carnal humano para aliviar a fome daquelas numerosas bocas súplices. Era impossível não adentrar logo de uma vez ao estabelecimento a fim de colocar-se livre daquele delírio e suas ideias novamente em ordem.</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-76636681191770887162014-01-19T11:02:00.002-08:002014-01-19T19:44:37.432-08:00KILL BILL<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgiZfSHRsHb6BBPys7troCIxydzE2h6hRHLOAoPdtAJoR0oVCopg-FbHl9k89FpeLUssEeUQeqHfUl4wf95l4XU4MCYcuyO1-GvvJQ8vv-LDmvXFpyk8CakvEeHPIdJyT2L24bNHfsqntl3/s1600/Foto0497.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgiZfSHRsHb6BBPys7troCIxydzE2h6hRHLOAoPdtAJoR0oVCopg-FbHl9k89FpeLUssEeUQeqHfUl4wf95l4XU4MCYcuyO1-GvvJQ8vv-LDmvXFpyk8CakvEeHPIdJyT2L24bNHfsqntl3/s1600/Foto0497.jpg" height="200" width="150" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Não há tanto tempo assim e é claro que estamos todos presos em um minúsculo espaço do mesmo. E quando ocorre de seu inimigo mais íntimo já não dispor de energia e vigor para a batalha, o que fazer? Mas você trás dentro do peito um turbilhão de sentimentos revoltosos, os quais aguardam ocasião para emergir e partir feito facas afiadas lançadas rumo ao alvo certo. <br /><br />Agora olhe como o seu inimigo transformou-se por completo. Veja, ele é apenas um arremedo do que te meteu medo e praticou contra você o mais puro e covarde terrorismo, o terrorismo da opressão, do exercício frívolo pelo gosto de amedrontar e inibir. Quem tem um inimigo tão íntimo despreza o escuro; em verdade, esconde-se na escuridão, até que a ira do inimigo se aquiete. <br /><br />O dia está marcado. Enquanto arruma suas malas, pense no caminho que deverá percorrer até o tão aguardado acerto de contas. Não deixe que seu coração esmoreça agora e te traia. Você aguardou resignadamente por este momento e o simples fato da promessa de que um dia ele chegaria te sustentou de pé em meio a tantas e tantas tormentas de abalar gente que se diz sempre sã. <br /><br />Renunciar à vingança e não levar ao encontro suas facas de laminas afiadas e reluzentes para seu intento mais secreto seria o mesmo que admitir anos de ordinária covardia travestida da espera da concretização de seu ideal supremo. Não é tempo de covardia e nem de compaixão, que aqui, no caso, significam a mesma coisa: significam apenas um arremate covarde, que não justifica o sacrifício do medo. <br /><br />Não seja o suposto suspeito medroso de sempre. Vá em frente! Seja valente. Vá e mostre que seu silêncio trêmulo nas horas dos gritos nada mais foi que um inteligente artifício, pela sobrevivência, uma astuta camuflagem emocional. Diga o que tem a dizer e abra sua mala. Retire dela a faca mais afiada e enterre-a de uma vez por todas entre as costelas do seu adversário. Vencerás. Entenderás Kill Bill.</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-5185841367990155062014-01-06T15:10:00.002-08:002014-01-06T15:19:30.401-08:00FELIZ 2014!<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi327f4TuoF4liSWEZR1HUlT6zXBCLpT8wehH9aWngS8AgbvPrqeSsKwxwd-JR1WXe8WWbcZxwCB4O6B-USM8zXsbA-ww4Vs3ahoksMXBgdOJHxvcgGk7-pam9yiPusGNT9TLXjtRDNwESj/s1600/JELIVRO.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi327f4TuoF4liSWEZR1HUlT6zXBCLpT8wehH9aWngS8AgbvPrqeSsKwxwd-JR1WXe8WWbcZxwCB4O6B-USM8zXsbA-ww4Vs3ahoksMXBgdOJHxvcgGk7-pam9yiPusGNT9TLXjtRDNwESj/s1600/JELIVRO.jpg" height="150" width="200" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
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<![endif]--><span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Como é do conhecimento dos que
estão comigo há mais tempo, todo início de ano eu me retiro alguns dias do
mundo digital. Fico fora das redes sociais e de todos os tipos e espécies de
interações na internet por algum tempo. Houve ano em que durou dez dias o
retiro, duas semanas, enfim, tão logo eu retorne ao mundo virtual, avisarei. Um
bom 2014 a
todos! 5.177 abraços! Até breve, se Deus
quiser!</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-42971809700382868262013-12-15T14:26:00.003-08:002013-12-15T14:46:26.074-08:00A SUSPEITA<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6hkHFZ8BWB_GtssvS162Q__cLHaePqETmGN4Lo7qG0q98LJKINgqC8JD4iB72ObIzEKiIxMyUQB_eJ7_etXdDrkR7V2oIKRFmasT7c_SMaahjzoa56jtRkFTvliqspSZMWaLJNOEiaUHZ/s1600/Foto0243.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6hkHFZ8BWB_GtssvS162Q__cLHaePqETmGN4Lo7qG0q98LJKINgqC8JD4iB72ObIzEKiIxMyUQB_eJ7_etXdDrkR7V2oIKRFmasT7c_SMaahjzoa56jtRkFTvliqspSZMWaLJNOEiaUHZ/s200/Foto0243.jpg" width="150" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Há algum tempo, tomei conhecimento de um caso de morte, no qual a morte é deveras suspeita, porém, como ninguém poderia interrogar a própria morte em si, a linha de investigação criminal seguiu os passos dos outros não tão suspeitos, contudo potencialmente candidatos à culpa. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">O caso teria que ter uma causa ou um culpado, para que não ficasse em aberto, insolúvel, que não se pudesse dissolver ou desatar para contentamento dos lesados em primeiro grau. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Todos os envolvidos na tragédia disseram que voltavam de uma festa e que, no caminho, decidiram entrar no prédio inconcluso e abandonado apenas para matar o tempo. Que qual tempo se mata quando finda a madrugada e todos já estão encharcados de álcool e altos de tantas outras substâncias que se consome na noite é a questão que, se não a mais incômoda, incomoda bastante, quando submetida à análise perita criminal, ou não. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Não havia luz em quantidade no local. As lanternas dos celulares auxiliaram a escalada dos três andares pelas escadas poeirentas e incógnitas. Risos e encontrões, abraços pelo caminho e esbarrões, beijos furtivos e advertências onomatopéicas por silêncio, frases ébrias proferidas por débeis línguas hipotônicas e gargalhadas rompantes e inexplicavelmente censuradas por quem talvez temesse acordar os insetos e roedores, únicos ocupantes residentes do local há pelo menos três décadas. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">O que o grupo não teria visto, sendo assim não poderia depor, era a suspeita principal entrar no prédio logo após o alegre tropel de farristas, bem vestidos e perfumados. Ela se infiltrou pelo portal sem porta e rumou pela escada no encalço da turba alucinada e inconsequente. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Havia pouco que chegaram ao piso do terceiro andar. Karina retinha urina desde sua saída da festa; pediu para que os amigos a aguardassem por um minutinho. Alguns segundos depois, todos ouviram um grito afastar-se rapidamente e silenciar em um estrondo abafado e seco. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Talvez um susto por um bicho qualquer a roçar alguma parte desprotegida e em seguida um esbarro em alguma peça de construção abandonada produzira tal efeito sonoro. Os corações disparam ao perceber o quão rápido o grito se afastou e cessou. Todos perguntaram silenciosamente por Karina, dada a lógica da sequência dos eventos. Mais tarde, houve quem dissesse ter tido algum presságio, algo como um sentido inexplicável da presença da principal suspeita, uma coisa ruim. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Histérica, a amiga mais próxima levantou a hipótese de ser uma brincadeira; começou a gritar para que a brincalhona cessasse com o brinquedo; e que fosse um brinquedo; e que seria melhor que fosse mesmo uma simples brincadeira... </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Mas a cada segundo se fazia mais evidente o termo sério. À proximidade do local parecido com um fosso de elevador fez com que os amigos se entreolhassem com os olhos esbugalhados, visíveis apenas pelas frágeis reflexões lunares. Os corações alinharam-se céleres e contritos cujas batidas praticamente se faziam audíveis no opressor silêncio da madrugada. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Não havia como ver o que se sucedera de fato. Contudo as evidências eram cada vez mais esmagadoras. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Karina não mais emitia um riso e nem respondia aos insistentes chamados, não mais se fazia presente entre os que se encontravam no pavimento do terceiro andar. Em algum momento, a principal suspeita a conduziu pelo único lugar que jamais ela poderia seguir. Quando os jovens acionaram a polícia e o serviço médico de urgência, era duplamente tarde: passava das quatro e meia e a jovem já estava morta. Vieram as equipes, mas já não havia tempo para mais nada em favor da vida. Daquela altura, ninguém se salva. E a principal suspeita evadira-se do local incólume. Ela nunca é responsabilizada pelos seus atos. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Mas teria sido por vingança, motivo fútil ou banal, a mando de outrem? O fato é que houve um latrocínio: um roubo de vida seguida pela morte. E todo crime cometido pela morte, de certa forma, é um latrocínio. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Aos infelizes fanfarrões restou o gosto amargo da colaboração para com a odiosa criatura informe, que vive de armar emboscadas aos desavisados de todos os lugares e épocas, e restou a pecha da suspeita e o inevitável arrependimento por todos os eventos casuais que contribuíram para aquele final fatal e irreversível.</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com12tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-49059795252502617392013-09-28T08:58:00.001-07:002015-01-04T18:18:12.029-08:00BRB - FILHO TEU<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhOkw2oQY0Gt4vVSqelRplSAKwJLV0UELRqaV-xQZYxy72wOsrxBBuoALcHBvSgzh6eNq9Np1843NPiP0wdX8mqk8_2yKh5iF2NtiKj4PDu7TQ5m0zqPotIVi5lJkz2_zpQtZJ1KcBW-rj2/s1600/SDC13048.JPG" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhOkw2oQY0Gt4vVSqelRplSAKwJLV0UELRqaV-xQZYxy72wOsrxBBuoALcHBvSgzh6eNq9Np1843NPiP0wdX8mqk8_2yKh5iF2NtiKj4PDu7TQ5m0zqPotIVi5lJkz2_zpQtZJ1KcBW-rj2/s200/SDC13048.JPG" height="200" width="150" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Ali estava ele, onde e como sempre esteve nos últimos tempos. Seu quarto seu mundo. Nada além. A cama o colocava em posição de ter o ápice da cabeça apontado para a ampla janela, logo, ele ficava de costas para a janela, que dava vista para um bom trecho em declive da cidade: telhados, quintais, ruas, algumas lojas, construções, outros prédios menos altos, árvores, pedestres transeuntes, automóveis, bicicletas, tudo se afundava para além da vista de sua janela e submergia nas entranhas do asfalto.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Dentro de casa, as pessoas que chegavam até sua cama eram sempre as mesmas. Salvo um ou outro visitante errante que ali por ventura viesse ter de passagem, aproveitando a ocasião de alguma outra visita mais interessante. E ficava patente que as outras visitas a serem feitas eram sempre mais interessantes do que uma visita que por ventura se propusessem a fazer ao nosso herói, Bob/Rock/Blues. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Assim ele passava os dias. A cuidadora que o cuidava, a família que ia e vinha no atarefamento dos dias, um ou outro prestador de serviço que ali surgia por conta de uma necessidade da casa. O homem deixava sua casa apenas para internações, consultas e exames; sempre uma aventura essas ocasiões. O mundo agora não fora feito para ele. O mesmo mundo que o viu em tantas e variadas façanhas fora reduzido ao relato supracitado. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Para distrair-se do tédio do dia e administrar a insidiosa e insinuante loucura senil, restava apenas algum delírio, alguma confusão, alguma ordem e desordem, algum assunto do passado trazido à tona de modo equivocado, desastrado, alguma droga farmacológica, alguma dor, algum programa estúpido na televisão, algum barulho nos arredores... Sua cabeça já estava porosa e aerada como um queijo suíço. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">E ocorreu que, em um dado momento, o zelador descobriu em Bob/Rock um meio para aliviar o próprio tédio. Dois entediados numa tarde vadia podem divertir-se mutuamente. O homem passou a visitar o apartamento de Bob/Rock com certa frequência. Embora fosse o zelador um homem maduro, um senhor de cabelos grisalhos e jeitão de avô, era ele, ao menos do ponto de vista dos puritanos e conservadores, péssima influência para Bob/Rock. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">E sob influência do novo conviva nosso herói passou a dizer coisas que não dizia. Fazia uso frequente de palavras de baixo calão, insinuações indecorosas, e agressões sexuais verbais explícitas das mais variadas. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">A cuidadora viu-se em maus lençóis. Perdeu a paz. Não sabia se compreendia ou repreendia o ancião octogenário. A coisa ia evoluindo e ninguém jamais suspeitou que a influência do zelador fosse a causa da mudança repentina de atitude do ancião, atribuíam tudo ao Alzheimer. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">O zelador subia ao menos três vezes por semana ao andar de Bob/Rock/Blues para ter em seu apartamento sob os mais variados pretextos. Às vezes, na falta de um motivo plausível, ia mesmo apenas com a desculpa de perguntar se estava tudo bem e se não precisavam de algo. Pedia licença para ir ao quarto do ancião ver como ele estava, e lá estando, soprava idéias dignas de um discípulo do Marquês de Sade nos ouvidos do idoso. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Bob/Rock o recebia com um sorriso malicioso e o observava com atenção incomum para seus padrões. O homem perguntava como iam a esposa e a cuidadora. Bob/Rock limitava-se a dizer que bem. Então o homem perguntava se Bob/Rock estava pegando as duas ou apenas uma. Bob/Rock ria maliciosamente e um resquício de seus dias de glória machista fazia com que ele contasse alguma falsa vantagem ao devasso zelador. Dizia que sim, que estava pegando as duas, direto e reto, de todo jeito, quando, como e onde queria. Quando a bem da verdade havia mais de dez anos que Bob/Rock pegava no máximo um substantivo feminino pneumonia. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Mas com o tempo Bob/Rock começou a acreditar-se e sentir-se o garanhão do leito. As mulheres não podiam trocar-lhe uma fralda ou dar-lhe o banho em paz que logo vinha ele perguntar se elas estavam querendo aquilo, e por isso procuravam suas partes mais recônditas com tanto empenho. Era constrangedor e algo novo aquele estado de coisas. O homem sempre fora respeitador. A cuidadora, em suas entradas e saídas do prédio, acabava sem saber por alimentar o apetite galhofeiro do zelador pervertido. Ela contava ao amigo de Bob/Rock do quanto o ancião estava mudado, impossível e indecente. O zelador fingia lamentar para depois rir-se de dobrar-se em sua guarita. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">A coisa estava mesmo insustentável. O ancião cada vez mais selvagem e agressivo. Numa tarde em que a esposa de Bob/Rock saiu para pagar algumas contas e deixou o ancião e a cuidadora a sós para realizarem a cada vez mais difícil tarefa do banho, a cuidadora pressentiu o desaforo vindouro. Tomou fôlego, posicionou e despiu o homem, que a todo instante ameaçava levantar-se, o que poderia causar um grave acidente. Ele teimava com o corpo inteiro, com os pés, as mãos, a cabeça. Não parava quieto. Já no banheiro, irou-se contra a cuidadora que sofria para mantê-lo sentado em baixo do chuveiro. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Após muita luta, a cuidadora o retirou de dentro do boxe na cadeira de banho ainda com algumas ilhas de espuma em partes variadas do corpo. No quarto, para passá-lo de volta à cama, foi outro acalorado embate. O homem achava que ela queria outras coisas, ela só queria terminar logo aquele trabalho, estava quase chorando. Após toda sorte de desaforos, Bob/Rock segurou a mulher pelos dois punhos e, com os olhos vidrados, apertando casa vez mais suas mãos na mulher, saiu-se com a seguinte frase: “Você quer que eu te faça um filho, é isso, sua bandida?” </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">A cuidadora não mais se aguentou. Do alto de seus setenta e dois anos disse: “Sim, quero muito um filho teu. Sempre quis. Não aguento mais esperar. Faça! Faça agora. Faça um filho em mim, seu Bob/Rock!” E desabotoou o vestido de cima a baixo. Despiu-se. Despiu-se também das peças íntimas e com visível dificuldade pela idade. Pôs-se completamente nua. Posicionou-se diante o ancião sentado na cadeira de banho ao lado da cama e colocou-se de modo a representar sua disposição a tudo. O homem ficou perplexo, atônito, cataléptico. A cuidadora lhe cobrava uma atitude de modo veemente. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Ficou ali naquela situação por alguns minutos. Seus seios fartos e adormecidos pendiam diante o homem boquiaberto. Suas muitas dobras concedidas pelo tempo ali estavam sem nenhum disfarce de ângulo ou postura. Nua em pelo. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">A cuidadora aguardou o tempo que achou condizente com o montante dos desaforos que sofrera nos últimos meses. Satisfeita, posicionou o ancião no leito apoiando-o em suas próprias carnes flácidas expostas. Terminou de enxugá-lo e vestiu-lhe a fralda geriátrica, o pijama, e deixou-o só até a chegada de sua esposa. E tudo voltou ao normal. O ancião voltou a tratar as pessoas que lhe cuidavam com o devido respeito. O zelador cada vez o visitava menos, pois o ancião já não mais reagia com empolgação à sua presença. A cuidadora continuou com seus programas de tevê da tarde, seu crochê, seu celular. A esposa alegrou-se com o fim dos constrangimentos.</span></span></div>
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span>Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com26tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-9232076707011681562013-08-30T21:07:00.000-07:002013-09-09T16:02:10.921-07:00CONFISSÕES À VALENTINA # 02<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgCW4vuFIlOWxtSdhSpUVSkA14rP0OK1Jvc1FrSFRBwrOY6M4FqUXJgJj1ikbLdwi3A2bsLWGIKbJm3MkBET8HQx9fV7vAKdKNzne7DjwxEbIJD5DPNtPySNsCvvWv_M-AtxM9bfovApoPF/s1600/SDC15750.JPG" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgCW4vuFIlOWxtSdhSpUVSkA14rP0OK1Jvc1FrSFRBwrOY6M4FqUXJgJj1ikbLdwi3A2bsLWGIKbJm3MkBET8HQx9fV7vAKdKNzne7DjwxEbIJD5DPNtPySNsCvvWv_M-AtxM9bfovApoPF/s200/SDC15750.JPG" width="150" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Estando todos conformemente instalados em nossa sala, fora introduzido um quarto elemento para compor o grupo. Januário, o aspirante a chefe de setor foi apresentado aos colegas, incluindo o narrador que vos fala, no mesmo dia em que me dei ao desfrute de ostentar a flor sobre minha mesa. Foi antipatia à primeira vista. Januário estava para a flor com o mesmo desagrado que a flor estava para Januário. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Não sou de formular conceitos prévios ao tempo necessário para se conhecer devidamente uma nova pessoa que vem conviver comigo, seja em ambiente de trabalho ou outro qualquer. Ao menos conscientemente não o faço. Contudo, independentemente da opinião de Valentina, notei que Januário tinha algo que não me agradava logo da ocasião na qual fomos apresentados. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">As semanas foram passando e à medida que a flor confirmava sua natureza otimista e alegre Januário provava sua disposição contrária. Numa ocasião em que consultei os colegas quanto à permanência ou não da flor em nossa sala, Januário foi taxativo quanto à Valentina: “Essa flor morrerá aqui. Isso não é ambiente para uma flor.” Todos se entreolharam. Houve quem concordasse. Houve quem se omitisse. E eu, claro, discordei. Afinal, Valentina tinha uma missão a cumprir. Não é por acaso que uma flor vem lhe fazer companhia em um dos momentos mais tumultuados de sua vida. Eu estava feliz com a flor, ela estava sendo boa para mim, fazendo-me bem. Não havia porque não querê-la ali. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Mas a florzinha era mesmo perspicaz e, quando já falante, na primeira oportunidade que teve, disse baixinho e sussurrado pra que só eu ouvisse: “Esse seu novo colega é negativo feito bolor. Logo contaminará a todos com sua natureza negativista.” E foi curioso perceber que Valentina sabia perfeitamente o que dizia. Pra tudo que houvesse, Januário tinha sua versão trágica e pessimista dos fatos pronta para ser lançada sobre nossas cabeças. Na boca de Januário, tudo parecia preferencialmente tender a dar errado. Fosse o que fosse. O rapaz sequer era capaz do gesto corriqueiro de retribuir ao “Bom dia!” que alguém lhe dissesse com mais ênfase. Ele simplesmente ignorava o cumprimento. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Noutra ocasião, ao ouvir mais uma das previsões pessimistas do aspirante a chefe de setor, logo nas primeiras horas do dia, a planta disse: “Vê o novo rapaz? Ele é o bolor que descolore minhas folhas. A cada frase negativa dele eu sinto como se me faltasse luz e ar. Não sei até quando resistirei. É preciso conservar a alegria e tratar a vida com o mínimo de leveza, meu rapaz. Do contrário, até você ficará constrangido em parecer leve e feliz. Vi isso acontecer na casa onde morei sobre o piano antes de vir pra cá. Uma pessoa pessimista contaminou a casa inteira. Saí de lá quase morta. Tive que renascer para ser feliz nas mãos da florista que te presenteou comigo.” </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">E não era preciso ser um grande analista para perceber que, tanto Amélio quanto Rivaldo já estavam ficando um tanto quanto, digamos, pálidos e embolorados. Amélio por ser de personalidade flexível e mais sugestionável repetia com frequência muitas frases e posicionamentos do novo colega de sala. Já Rivaldo por ainda não ter bem claras e definidas suas opiniões quanto ao dia e nova formação do grupo hora permanecia impassível e hora dava indícios de negativismo, porém ainda achava normal sorrir e dizer coisas leves. E eu comecei a ficar curioso pelo fenômeno do bolor que crescia a um canto da sala. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Devo admitir que, de início, achei ser pura invenção da planta, criatividade herbácea. No entanto logo pude notar uma pequena mancha de bolor de cor roxa na parede onde ficava apoiado o encosto da cadeira de Januário. E a mancha crescia e espalhava outros pequenos focos sobre a mesa, cadeira e objetos do rapaz.</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-10569151301253436052013-08-22T19:19:00.002-07:002013-08-25T06:56:00.650-07:00CONFISSÕES À VALENTINA # 01 <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjKtNODczHG8ZJG0jh94AOruK8gVE0yVhhyZtd3UvKwZ69tbLZDjfBRWEULoBCCab3E8Q6xVg3KLXhuRXbn39SZyV3IhmHu6N5ppm_C8hSsEEJOukkZUsCTbSJEJDn7y4nRgaqYw9DpgsRD/s1600/SDC15750.JPG" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjKtNODczHG8ZJG0jh94AOruK8gVE0yVhhyZtd3UvKwZ69tbLZDjfBRWEULoBCCab3E8Q6xVg3KLXhuRXbn39SZyV3IhmHu6N5ppm_C8hSsEEJOukkZUsCTbSJEJDn7y4nRgaqYw9DpgsRD/s200/SDC15750.JPG" width="150" /></a></div>
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Percebendo que Valentina perdia flores a uma proporção maior do que as concebia, achei por bem deixá-la a semana inteira sem visitar minha sala; postada sobre a mesa da varanda que serve de entrada aos funcionários. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Ela até que ficou bem. Ainda conserva duas flores no ápice de seu frágil e recurvado caule. Acredito que sua florada esteja chegando ao final, porém, como nada sei sobre a planta, aguardarei o desfeche de seu ciclo. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Todos os dias eu a vi ali, parada sobre a mesa, impassível, embora doce e meiga. Passei por ela, no entanto jamais falei com a flor nos momentos em que havia alguém presente. Acho estranho e acho que também causaria estranheza aos que nos vissem conversando. Ela não disse palavra durante a semana que passou. Eu até acariciei suas pétalas e folhas sempre que pude, banhei-a sob a torneira do tanque e ofereci algumas poucas horas sob o sol do final das manhãs no terraço. Ao todo foram dois banhos que lhe dei. Tento não ser ausente, mas o trabalho não permite que eu dedique mais tempo à flor. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Como sendo final de semana, só a verei amanhã pela manhã, segunda feira. Espero que fique bem. Já penso em trazê-la para casa em definitivo; para que venha morar em minha goiabeira; onde já tenho uma hóspede orquídea de outra espécie. Uma bem rústica que resistiu a todas intempéries do tempo e períodos de longa ausência por parte do vil jardineiro que vos fala. Raimunda é o nome da planta que só floriu uma vez em três ou quatro anos. Talvez naquela ocasião estivesse apaixonada por algum pássaro mandrião veranista. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Quanto à Valentina, devo admitir ter sentido sua falta na semana de sua ausência. Meus colegas de sala pouco falam, e quando falam não é o mesmo que ouvir Valentina, que fala de literatura e através de uma visão mais filosófica e existencialista. Gosto de meus colegas; damo-nos bem; mas preciso falar de literatura com alguém. É que somente compreendo a vida através da literatura.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Noutra noite, até sonhei com Valentina. Sonhei que ela metamorfoseava-se numa linda deusa nórdica. A deusa nórdica dos olhos doces e frios feito um par de opalas reluzentes e cortantes. Morar naquele olhar, quem sabe lá? Quem sabe se um dia, ah!... E como seria? Tantos músculos... Tantos encantos... Uma volta ao mundo enlaçar aquele enorme monumento feminino. Uma estátua doce de açúcar, uma boneca de marshmallow branco virginal, uma vertigem, uma miragem no deserto árido dos meus dias mais ordinários, uma escultura viva talhada no mais puro mármore branco. Um sonho. Um sonho que se desfez ao toque de meus lábios. Não era algo para ser tocado. Era algo pertencente ao vaporoso e soporífero universo onírico. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Acordei sem a planta e atormentado pela imagem da deusa nórdica em que ela se tornou por um breve momento de encanto dormente. Preparei o café sem nem mesmo notar a medida que depositei de pó sobre o coador. Ficou forte feito café de padre e de bebum. </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"><span style="font-size: large;">Ao chegar no trabalho, era dia de relatórios e fechamento de produção mensal. Vi a flor ao chegar, contudo não a levei comigo para minha sala, ainda não. Valentina era a ausência em minha mesa. Eu era a ausência em minha mesa. Tudo era ausência e falas formais pouco vibrantes.</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com12tag:blogger.com,1999:blog-4837274882264979996.post-64676483908158228132013-08-10T15:09:00.002-07:002013-08-10T15:53:22.165-07:00VALENTINA, A ORQUÍDEA # 03<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-oAVsuUPTwHIhL-Orz_NV0F9imWcEHIkdeMHbVxwZMX-PrBzNiR2uIYN97K2eY2gniT4bpWVblYalsaK9n4RyW6J8TuM-tNWPt9XToPdyfWpi8z2__kFYipHHL_nQmKTJojfBW8TlKXAk/s1600/SDC15736+%2301+VALENTINA.JPG" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-oAVsuUPTwHIhL-Orz_NV0F9imWcEHIkdeMHbVxwZMX-PrBzNiR2uIYN97K2eY2gniT4bpWVblYalsaK9n4RyW6J8TuM-tNWPt9XToPdyfWpi8z2__kFYipHHL_nQmKTJojfBW8TlKXAk/s200/SDC15736+%2301+VALENTINA.JPG" width="150" /></a></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Não sei como aconteceu e nem por onde ela emitiu o som de sua voz fina e esganiçada. Só sei que finalmente Valentina decidiu falar. Era uma ensolarada manhã de inverno onde, na rua, lufada após lufada, o vento espalhava a poeira por toda a cidade. No interior da empresa, estávamos na sala que divido com meus colegas Amélio e Rivaldo. Ouvi bem quando ela, assentada ao lado de meu monitor, agradeceu-me por seu nome e começou a falar como se estivesse guardando tudo há tempos. Excitada, disse que em casa de seu antigo dono ela não tinha um nome, e que não ter nome ia contra sua base e princípios cristãos, e que morava sobre um piano, e que coisas estranhas aconteciam naquela residência de niilistas.</span></span></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Ela falou também que não gosta do sereno da madrugada, que sente frio e que amanhece ensopada. Foi o que aconteceu quando a deixei a céu aberto de terça para quarta para passar a noite ao relento. Ela afirmou que detestou, e que foi um grande erro que cometi, mais um de uma série. Fiquei meio sem graça. Ela interpretou meu embaraço como um pedido de desculpa não formal e nem verbal, e aceitou, disse. </span></span></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Colocou também que não gosta de sol a qualquer horário. Que minha idéia de deixá-la exposta ao final da tarde de quinta foi um verdadeiro desastre à sua beleza e que não sabe como ainda preservou três de suas delicadas flores brancas atadas ao caule, embora murchas como se tivessem doentes e em idade avançada. Percebi que tudo que fiz para seu conforto, saúde e bem estar durante a semana foi realmente uma sucessão de erros bem intencionados. Agora sei que ela só aprecia o sol do início da manhã e o sereno que entre por uma garagem ou janela não muito aberta. “Vivendo e aprendendo” é um clichê do qual pretendo jamais separar-me nesta vida. </span></span></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Ela comentou que, antes de ser-me dada, estava lendo Tomás de Aquino, o santo doutor da igreja, mas que seu santo de preferência era o filósofo bispo de Hipona, Agostinho. Disse que o santo filósofo a comoveu principalmente pela maneira compreensiva com a qual tratava sua mãe, Mônica, a qual teria problemas com o álcool. Eu, que já li Confissões de Agostinho de Hipona, nunca atentei à tal particularidade. Talvez eu seja de fato um leitor não muito confiável, relapso e meio displicente conforme ela disse que deve ser o caso. Mas confesso aqui que realmente não me recordava de tal passagem de Confissões e nem de tal aspecto. Precisarei consultar novamente à obra do santo. </span></span></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;"></span></span><br /></div>
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<span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times,"Times New Roman",serif;">Valentina demonstrou certa impaciência para com minha parvoíce. Eu estava ainda perplexo e aturdido com a flor falante. Sua ação de falar e, principalmente, sua cultura literária voltada à teologia deixaram-me um tanto assombrado. Acho que fez isso com a deliberada intenção de me impressionar. Não contente quis saber qual era da bíblia meu livro favorito. Achei melhor não responder. Ela bufou. Olhei para meus colegas. Eles olhavam para suas telas. Pareciam não ouvir a planta e nem sequer suspeitar o que se passava em minha mesa. Ela bufou novamente e disse que, já que eu não tinha condições de manter um diálogo mais filosófico e consistente, diria ela então qual o livro bíblico de sua preferência. Perguntou se eu já havia lido Tobias. Vendo que eu nada dizia, complementou: “É um livro incrível! Um verdadeiro romance bíblico. Cheio de sedução e intrigas, mistérios. Vale a pena”. Em seguida, narrou a história em linhas gerais e causou-me certo espanto ao dizer com imensa naturalidade que Raquel sempre viuvava ao raiar de cada noite de núpcias. Achei aquilo meio mórbido. Ela riu de mim como quem ri de um simplório puritano. Levantei com os olhos fixos sobre a flor e a deixei em companhia de meus colegas; pensativo, segui para realizar os atendimentos daquela manhã.</span></span></div>
Jeferson Cardosohttp://www.blogger.com/profile/04469914492697915277noreply@blogger.com10