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ARMELAU - LÁGRIMAS DE MORÉIA

Pela porta entreaberta, era possível ver Moréia. Revoltada, ela chorava sobre a sequidão de suas carnes, soluçava com os anos acumulados nas papadas de seus lábios e tremelicava comprimindo as rugas incrustadas no entorno de seus olhos. Cada vez mais seca, cada vez mais rude, cada vez mais amargurada.

Bildo já não trazia alento algum às frustrações da gerente. O rapaz estava demasiadamente envolvido nos cuidados do recém nascido Musca e em seus projetos pessoais de provar ao pai que jamais deveria ter sido qualificado como um bastardo. Corria o dia todo feito um louco atordoado. Incansável, a todos os lugares passíveis de vendas visitava abraçando mais compromissos do que seus braços eram capazes de sustentar. Deixava atrás de si um rastro de incontáveis clientes insatisfeitos. Chegavam reclamações de todas as partes á ZT3, as quais Moréia ocultava carinhosamente em sua caixinha de segredos.

Era a versão mais triste possível da caixa de Pandora a caixeta de Moréia. Enquanto Pandora abrigava em sua caixa todos os males do mundo ocultos aos inocentes e esperançosos olhos dos homens, tudo que Moréia trazia em sua caixinha era o bolor do desalento e a sequidão da desilusão, o vazio existencial e os rancores dos relacionamentos desastrosos, os desamores platônicos e as frustrações das mais ínfimas mazelas mundanas.

Wilson José era um funcionário público da gráfica do município. Dotado da força de um burro e da inteligência de um asno, Wilson José desfrutava com grande avidez as vantagens de um cargo de confiança concedido pelo chefe do município por conta de favores inescrutáveis devidos ao seu pai.

Certa vez, a gráfica do município contratou os serviços da ZT3 para o fornecimento de matéria prima para uma ação panfletária em resposta às revelações supostamente levianas da oposição. A empresa de papéis enviou Moréia e outra funcionária para tratar o montante e fechar o contrato. Diante à mesa de Wilson José, Moréia imaginou assentar-se frente a frente com um homem de poder. Sentiu comichões de agarrá-lo pelos colarinhos altos da camisa a fim de atracarem-se ali mesmo como dois cães desvalidos. Descobriu o telefone pessoal do rapaz e passou a comunicar-se com ele, diariamente, através da rede social. Como ocorria em todo encontro casual, Moréia começou a acreditar que Wilson José seria a solução de seus sérios problemas de relacionamento.

Wilson José, por seu turno, passou a frequentar a ZT3 Paper Company sob os mais variados pretextos de acerto. Parava diante à porta de Moréia e olhava para a senhora senhorita como quem encarasse uma torta de amoras maduras amanhecida. Moréia retribuía com o langor de uma tórrida coxinha de codorna restante em um imenso prato branco de porcelana.

Passavam longos minutos assim, como a exibir apetites voluptuosos um sobre o outro. Para Wilson José, aquilo era o exercício pleno de sua condição de garanhão fidalgo e dono de posto de serviço público de lugarejo. Quanto à Moréia, era a grande oportunidade de ir à forra para com aquelas que sempre caçoavam dela pelas costas e provar que despertava mais do que desinteresse e sono nos homens.
 
E como já era de se prever, o relacionamento entre ambos não foi além das insinuações de um morno enlace amoroso no gabinete e de meia dúzia de encontros matutinos das saídas das baladas nas quais ambos eram figuras desenquadradas e deslocadas por conta do atraso no andamento da cronologia de suas vidas.

Como ambos sendo livres e desimpedidos, não havia qualquer pretexto plausível a favor de Wilson José para sair fora de Moréia. Foi então que o funcionário público se saiu dizendo que Moréia era muito pra ele, que, como tendo três mamilos, se sentia totalmente inadequado dentro de uma eventual relação com a senhora senhorita. O fez via rede social. Naquele exato minuto no qual Armelau avistou a gerente esvair-se em lágrimas assentada em seu posto de trabalho.

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