O ano é 1981 e eu tenho sete anos
de idade. Aquela tarde caía por de trás do horizonte e consigo levava o sol
para lugares distantes que eu jamais conheceria até o presente momento em que
teço essa narrativa. Naquele ano, morreram Bob Marley, músico, Amácio
Mazzaropi, ator e cineasta, Glauber Rocha, cineasta, e o defunto da rua de trás
do quarteirão no qual eu morava. Não que o homem tivesse vivido defunto e assim
morrido. Mas sim por eu tê-lo conhecido defunto e defunto ele ter vivido sempre
em minha memória.
Eu estava no portão de casa
olhando para o nada. Os moleques sujos e espancados da esquina percorriam a rua
convocando todos os outros garotos para verem o espetáculo do defunto
desfigurado da rua de trás. Eu já havia tomado meu banho, tinha o cabelo úmido
e meticulosamente repartido no meio da cabeça formando uma espécie de cortina
de testa. Vestia uma camiseta de listras com gola pólo e a bermuda de costuras
tortas feita com restos de brim pela minha avó, que sempre dizia que não sabia
costurar. Calçava as sofríveis sandálias franciscanas em couro marrom. Elas
eram péssimas para correr com a molecada da rua. Eu sempre ficava para trás por
causa da transpiração dos meus pés que deixava as sandálias escorregadias e com
a palmilha pegajosa por causa do barro formado pela poeira do asfalto. Pior era
quando algum pedrisco entrava entre a palmilha e a planta dos meus pés.
Parecia mesmo ser uma grande
aventura uma excursão para ver um defunto na rua de trás, uma oportunidade.
Disseram que era um homem muito velho e que havia sido atropelado por um
cavalo, ou uma charrete, ou uma carroça, ou um carro, ou um caminhão de
transportar gado para o abate. A cada frase dos garotos o acidente perdia e
ganhava elementos.
Eles perguntavam entusiasmados se
eu não ia ver o morto da cara de jornal, do nariz de cera, da perna de madeira,
do braço de plástico, do olho de vidro. O estrago feito pelo acidente teria
sido tamanho que a desfiguração do cadáver obrigou o uso de peças artificiais
para recompor o corpo a um estado viável ao velório.
Eu nunca havia visto um morto
para além da tela do meu televisor em preto e branco e de má sintonia. Os
moleques tinham muita pressa. Estavam esbaforidos. Já haviam ido e voltado
diversas vezes à casa do defunto. Queriam que o bairro inteiro testemunhasse o
grande evento fúnebre.
Mas eu não sabia se poderia ver o
morto, ainda mais sendo ele uma figura tão deformada e certamente assustadora.
A própria morte como evento e fenômeno sobrenatural seria o suficiente para
impedir de eu conseguir a autorização da minha mãe para embarcar em tal
expedição. Pior ainda sendo o defunto recomposto por partes de materiais
inumanos, algo que me traria à lembrança certo filme de terror no qual uma
criatura humanóide se regenerava diante dos olhos atônitos dos seus algozes
mutiladores. Tive várias noites de insônia após encontrar o filme do
“regenerator”, por acaso, durante uma visita, quando fui deixado na sala de uma
senhora enquanto meus pais conversavam com ela na copa.
Cabe salientar aqui que em momento
algum temi presenciar o fenômeno da auto-regeneração. Os divulgadores do evento
deixaram bem claro que as partes anexadas já estavam perfeitamente instaladas e
conformadas ao defunto. A lembrança do filme foi algo que me ocorreu quando
pensei em argumentar e justificar a importância do meu ingresso naquela
fantástica e imperdível excursão funérea.
Eu sabia que meu tempo de rua já
havia se esgotado naquele dia assim que entrei no banho, era a rotina. Pedi
apenas para ir até a esquina, algo que não levantaria qualquer suspeita sobre
minha verdadeira intenção, pois também fazia parte da rotina. Com sorte, minha
mãe estaria de bom humor e permitiria sem maiores questionamentos. O meu gosto
por ficar fora de casa não era nenhum segredo.
Fui feliz em meu intento e recebi
a autorização apenas para ver a rua mais um pouco. Podia ir até a esquina, mas
sem me sujar de modo algum. Para além daquilo, eu já cairia na ilegalidade.
Então parti. Contudo perdi a excursão dos moleques sujos e espancados e fiquei
ali na esquina mesmo, parado, sem coragem para ir sozinho ao outro lado do
quarteirão procurar pela casa do morto.
Após alguns minutos, um moleque
retardatário, morador das quadras de cima, descia para ver o morto desfigurado
e que havia sido anunciado inclusive em sua rua. Ele também desconhecia o exato
endereço. Descemos a procurar. Não foi difícil encontrar. As referências e as
pessoas aglomeradas nos levaram diretamente ao meio da rua de trás do
quarteirão.
Tratava-se de uma casa modesta de
paredes azuis desbotadas, muro e portão baixos e descascados. A residência
estava repleta de gente, e totalmente aberta ao público. Em seu interior,
movia-se uma massa trajada em cores escuras e que dizia frases doloridas e
derramava lágrimas aqui e ali em redor do esquife. Bem do meio daquela gente,
foi possível ver surgir algumas caras sujas e conhecidas, as dos moleques sujos
e espancados. Vinham lívidos e de olhos esbugalhados, porém, logo que notavam a
presença de outros moleques no recinto, eles providenciavam uma máscara de
sorriso falso, um simulacro de coragem e missão cumprida.
Muitos egressos da borda do
esquife certamente passariam diversas noites sem dormir por conta da forte
experiência de encarar a morte na face do morto. O movimento da massa fúnebre
era constante e logo me tragou para dentro de si. Aos poucos fui conduzido ao
destino de todos, que era a beirada do caixão. Vozes sussurravam a desventura
do velho, que teria sido brutalmente atropelado na estrada. Fiquei intrigado
pela circunstância de ele perambular pela pista sendo dotado de tanta idade.
Quando dei por mim, já estava de
pé diante o ataúde e seu misterioso habitante, um homem velho e magro de cabeça
branca e pele cinza, comprido como certamente seria a estrada que o matou. Ele
tinha um nariz fino e longo ladeado por dois grandes buracos cabeludos. Um
enorme par de orelhas murchas e com ouvidos cabeludos. Os olhos estavam
mergulhados dentro de suas profundas fossas orbitais. Não tinha lábios, apenas
uma fenda murcha e cerrada denotava a presença do que havia sido uma boca algum
dia. Seu rosto era fino e longo como todo o corpo e certamente feito de cera.
Suas mãos, ossudas e nodosas como galhos secos retorcidos, certamente eram
peças feitas a partir de alguma jabuticabeira. O resto eram flores brancas
murchas e um par de sapatos bicudos e compridos apontando para o teto escuro de
telhas sobre ripas.
Talvez aquele homem odiasse toda
aquela gente a aquecer a sala com seus corpos vivos capazes de derreter a cera
de algumas de suas partes postiças, o que seria um imenso vexame. Sobretudo ele
deveria odiar a presença dos moleques que ali estavam não para se despedir, mas
apenas para satisfazer a curiosidade mórbida em ver um defunto tão horrendo
quanto a criaturas de filmes de terror.
Disseram que o mais corajoso
entre todos os moleques tocaria o defunto, e que tocaram, porém nenhuma
testemunha confiável viu tal ousadia. Alguns viram o defunto se mexer como se
sentisse alguma coceira recôndita, outros juraram tê-lo visto abrir os olhos e
olhar de soslaio para um dos moleques.
Pude apenas notar que ele ainda
respirava pesadamente através de suas imensas fossas nasais cabeludas. Parecia
muito cansado.
Sua escrita é bonita, Jefh... Simples e bonita. Isso me encanta! Agradeço por ter encontrado o seu blog. Ganhou mais uma simples leitora para te acompanhar. Um beijo!
ResponderExcluirEu tento. Tento simplificar e dizer a verdade, mesmo quando minto. Beijo!
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