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Mostrando postagens de março, 2013

SPEEK LEE, O CÃO TRAFICANTE

Nunca imaginei um dia sentir falta daquele bicho infeliz com sua cara parva inabalável esperando platonicamente por um afago de minha parte. E pra dizer a verdade e fazer da sinceridade minha única diretriz, não sou o tipo que afaga bichos e depois permanece cinicamente sem lavar as mãos só para fazer tipo. Até a última vez em que o vi, ele era branco, com poucas e grandes manchas negras espalhadas por sua rala pelagem. Dotado de porte rigorosamente médio, era ele todo medíocre. A impressão que eu tinha é de que o bicho ficava atado eternamente por uma curta corrente ao arame estendido à distância de cinco metros indo de um caibro a outro de sustentação da frágil cobertura de telhas de amianto que servia por abrigo do carro. No entanto, sua dona sempre afirmava que ele dava lá suas escapadelas pelas redondezas. Se isso realmente acontecia, algo que não posso afirmar, pois jamais o vi solto, deveria ser um momento de profundo êxtase e gozo de liberdade nas asas da mais pura vadia

ESPERANDO A VIDA

“No final do mês,...” “De qual mês?” “O mês que finda, este.” “Ah.” “Posso continuar?” “Sim, por favor.” “Pois bem, no final deste mês, a nossa editora começa a reedição dos melhores e mais importantes textos dele.” “E como se elege os melhores e mais importantes textos de alguém?” “Tem certeza de querer mesmo sustentar esta pergunta? Não lhe parece óbvio?” “Não. Não me parece.” “Pesquisa, oras. Através de pesquisa é que se chega aos textos de maior relevância de um autor durante sua vida produtiva.” “Mas e se ele, por ventura, se ainda estivesse vivo, descordasse dos textos eleitos?” “Como saber? Eu sei lá! Você tem cada pergunta. Ele que proteste então das profundezas ou das alturas.” Enquanto os homens de negócios discutem o destino do autor finado, eu falo das coisas mais imediatas, das coisas mais corriqueiras. Eu conhecia o autor e gostaria de agora registrar um ultimo relato. Algo bem simples e pitoresco, bem ao meu estilo. Fato é que, em determinado momento de sua vida,

O GRANDE CIRCO NONSENSE – A INCRÍVEL MULHER DA BOCA TORTA

É claro que naquele lugar sempre haveria separação entre pessoa e pessoa. Tudo ali era o mais puro e sólido embuste. Vendiam a imagem das superioridades e impunham gratuitamente a das inferioridades, como quem defende a qualquer custo uma mentira travestida em absoluta verdade. E ai de quem questionasse aquela pompa! Pompa pobre, é verdade; porém deveras pomposa. Não foi fácil ver mais uma vez a doce Adele humilhar-se por tão pouco. O que ela ganharia ali além do ingresso àquele circo de convenções bizarras por mais uma noite enfadonha? Um prato com salgados frios e um bolo de glacê insípido e amanteigado? Era preciso entender por que afinal de contas Adele se sujeitava a partilhar tão triste espetáculo fornecendo àqueles seres a substância que alimentava toda falsa caridade que exerciam em socorro do desafogo da própria consciência permissiva. Abriram uma porta e, com todo desdém de que foram capazes, deixaram que Adele adentrasse o recinto. Ela veio com aquele sorriso sofr

O ÚLTIMO CHORO

Ao ver a multidão que se aglomerava diante à porta do apartamento do cantor, na Rua Moerás, Pinheiros, zona oeste de São Paulo, em um condomínio de classe média, em horário que muitos sa í am para o trabalho, estudantes para a escola, a mãe do menino de doze anos do bloco verde disse a ele: “Corra, vá ver o que acontece e volte aqui pra me falar.” O menino voltou arrasado: “Tanta gente chata, e foi morrer justo o roqueiro do prédio!” disse o garoto que tanto se gabava aos amigos por ter o ídolo por vizinho. “Morrer não combinava com ele.”, completou o jovem de si pra si. E fato é que naquela manhã ninguém esperava que alguém tão vivo como ele ficasse assim, tão morto de repente. E sabe aquela história de que pra morrer basta estar vivo?, receio ser verdade. Descobri o fato ao ler a matéria do site do Estadão que tratava o caso. Descobri tomando uma xícara de café e comendo torrada com geléia de amoras silvestres que colhi nos prados do entorno de minha cidade no último final de

O GRANDE CIRCO NONSENSE - O TRUQUE DOS LENÇOS COLORIDOS

Naquele horário da manhã, o sol, que incide sobre toda a cidade, naquele pequeno trecho de rua pavimentada com paralelepípedos enegrecidos, não incide. Permanecem a sombra e a umidade do orvalho da madrugada enquanto tudo em redor é incendiado pelos vigorosos raios do astro rei que rege o dia. Inclusive o pequeno sobrado de paredes brancas e desbotadas que deixam à mostra trechos de areia vermelha do reboco de outros tempos da construção civil local fica claro como se tivesse luz própria. O interfone soa somente ao final do período de pressão sobre a tecla. A porta corrediça range sobre o trilho seco. Há dificuldade para abrir o trinco do portão fora de esquadro que força continuamente para baixo as dobradiças pelas quais está atado, e somente após algum esforço a jovem cuidadora consegue abri-lo para que entre o mágico. Seu Alio está de olhos abertos prontos para acolher a imagem do visitante que rompe pelo portal da copa. Estende a mão para cumprimentá-lo e, após o ape