Pular para o conteúdo principal

VALENTINA, A ORQUÍDEA # 03

Não sei como aconteceu e nem por onde ela emitiu o som de sua voz fina e esganiçada. Só sei que finalmente Valentina decidiu falar. Era uma ensolarada manhã de inverno onde, na rua, lufada após lufada, o vento espalhava a poeira por toda a cidade. No interior da empresa, estávamos na sala que divido com meus colegas Amélio e Rivaldo. Ouvi bem quando ela, assentada ao lado de meu monitor, agradeceu-me por seu nome e começou a falar como se estivesse guardando tudo há tempos. Excitada, disse que em casa de seu antigo dono ela não tinha um nome, e que não ter nome ia contra sua base e princípios cristãos, e que morava sobre um piano, e que coisas estranhas aconteciam naquela residência de niilistas.

Ela falou também que não gosta do sereno da madrugada, que sente frio e que amanhece ensopada. Foi o que aconteceu quando a deixei a céu aberto de terça para quarta para passar a noite ao relento. Ela afirmou que detestou, e que foi um grande erro que cometi, mais um de uma série. Fiquei meio sem graça. Ela interpretou meu embaraço como um pedido de desculpa não formal e nem verbal, e aceitou, disse.

Colocou também que não gosta de sol a qualquer horário. Que minha idéia de deixá-la exposta ao final da tarde de quinta foi um verdadeiro desastre à sua beleza e que não sabe como ainda preservou três de suas delicadas flores brancas atadas ao caule, embora murchas como se tivessem doentes e em idade avançada. Percebi que tudo que fiz para seu conforto, saúde e bem estar durante a semana foi realmente uma sucessão de erros bem intencionados. Agora sei que ela só aprecia o sol do início da manhã e o sereno que entre por uma garagem ou janela não muito aberta. “Vivendo e aprendendo” é um clichê do qual pretendo jamais separar-me nesta vida. 

Ela comentou que, antes de ser-me dada, estava lendo Tomás de Aquino, o santo doutor da igreja, mas que seu santo de preferência era o filósofo bispo de Hipona, Agostinho. Disse que o santo filósofo a comoveu principalmente pela maneira compreensiva com a qual tratava sua mãe, Mônica, a qual teria problemas com o álcool. Eu, que já li Confissões de Agostinho de Hipona, nunca atentei à tal particularidade. Talvez eu seja de fato um leitor não muito confiável, relapso e meio displicente conforme ela disse que deve ser o caso. Mas confesso aqui que realmente não me recordava de tal passagem de Confissões e nem de tal aspecto. Precisarei consultar novamente à obra do santo.

Valentina demonstrou certa impaciência para com minha parvoíce. Eu estava ainda perplexo e aturdido com a flor falante. Sua ação de falar e, principalmente, sua cultura literária voltada à teologia deixaram-me um tanto assombrado. Acho que fez isso com a deliberada intenção de me impressionar. Não contente quis saber qual era da bíblia meu livro favorito. Achei melhor não responder. Ela bufou. Olhei para meus colegas. Eles olhavam para suas telas. Pareciam não ouvir a planta e nem sequer suspeitar o que se passava em minha mesa. Ela bufou novamente e disse que, já que eu não tinha condições de manter um diálogo mais filosófico e consistente, diria ela então qual o livro bíblico de sua preferência. Perguntou se eu já havia lido Tobias. Vendo que eu nada dizia, complementou: “É um livro incrível! Um verdadeiro romance bíblico. Cheio de sedução e intrigas, mistérios. Vale a pena”. Em seguida, narrou a história em linhas gerais e causou-me certo espanto ao dizer com imensa naturalidade que Raquel sempre viuvava ao raiar de cada noite de núpcias. Achei aquilo meio mórbido. Ela riu de mim como quem ri de um simplório puritano. Levantei com os olhos fixos sobre a flor e a deixei em companhia de meus colegas; pensativo, segui para realizar os atendimentos daquela manhã.

Comentários

  1. Nossa!! Com sempre seus textos são sensacionais!!!
    Muito bom!!

    bjss

    ResponderExcluir
  2. Ahhh que lindo, adoro orquídeas!! E tenho mesmo ciúmes de algumas plantas (ai!... rs)... Realidades fantasiosas não tão fantasiosas assim... Adorei os três textos...

    Grande abraço!

    Se quiser me fazer visitinha também, ficarei feliz!

    http://gota-na-poca.blogspot.com.br/2013/08/contos-dos-que-gente-escuta-todo-dia.html

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que bom que gostou, Samanta. Fiz com muito carinho. Visitarei sim. Obrigado por seu convite e atenção. Outro grande abraço!

      Excluir
  3. É Jefh... pensando bem a Valentina pode ser de outro mundo. E esse mundinho é todo seu ;-)

    Abração
    Jan

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Meu e de todo aquele que tome parte por vontade própria, JAN. Beijo!

      Excluir
  4. Oi Jeferson!
    Aqui é Sabrina Liddell, do blog Tromba. Obrigada por visitar meu blog.
    Adorei seu blog e li 3 textos, mas já elegi esse aqui como meu favorito.
    Valentina me lembrou muito da Rosa do pequeno príncipe. A mesma personalidade forte e atrevida.
    Parabéns pelo dom com as palavras. Você escreve super bem!
    Já estou participando do seu blog para acompanhar as postagens.
    Abraços!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que bom que imergiu no blog e encontrou coisas de seu agrado! Fique à vontade, Sabrina. Muito me honra sua presença aqui. Beijo e obrigado!

      Excluir

Postar um comentário

Comente. É isso que o autor espera de você, leitor.

Postagens mais visitadas deste blog

Cartas a Tás (20 de 60)

Ituverava, 30 de junho de 2009 Aqui estamos, Tás. Eu e essa simpatia que é Lucília Junqueira de Almeida Prado, autora de mais de 65 livros publicados, capaz de recitar poemas de sua autoria compostos com cantigas de roça, bem como poemas de Cora Coralina, feito uma menina sobre o palco. Estive novamente na feira do livro, engoli meu orgulho de vez e abracei a causa. Fui lá não para vingar-me, com críticas sobre o fabuloso evento, nutridas por minha derrota no prêmio Cora Coralina, mas sim, para divulgar a campanha Cartas a Tás, que agora ganhou um slogan; “Restitua a cidadania do menino encardido que ficou famoso e apátrida”. Tás, você é de Ituverava e Ituverava é sua, irmão. Espero que aprove, meu mestre, pois para servir nesta batalha tive que ser um bom perdedor. E não é bom perder, isso aprendemos nos primeiros anos de existência, acho até que já nascemos com este instinto, pois quando uma criança toma por força algum objeto que por ventura esteja em nossa posse, qual menino não se

O Verbo Blogar

O Blog, á nossa maneira, á maneira do blogueiro amador, blogueiro por amor, não dá dinheiro; mas dá prazer. Isso sim. Quando bem trabalhado dá muito prazer. Quando elaboramos uma postagem nos percorre os sentidos uma onda de alegria. Somos tomados por uma euforia pueril. Tornamo-nos escritores ou escritoras que “parem” seus filhos; tornamo-nos editores; ou produtores; ou mesmo jornalistas, ainda que não o sejamos; tornamo-nos poetas e poetisas; contistas e cronistas; romancistas; críticos até. Queremos compartilhar o quanto antes aquilo que criamos. Criar é uma parte deliciosa do “blogar”; e blogar é a expressão máxima da democratização literária – e os profissionais que não façam caretas, pois, se somarmos todos os leitores de blog que há por aí divididos fraternalmente entre os milhões de blogs espalhados pelo grande mundo virtual, teremos mais leitores que Dan Brown e muitos clássicos adormecidos sob muitos quilos de poeira. Postar é tudo de bom! Quando recebemos comentários o praze

O Cavaleiro Da Triste Figura

Há algum tempo que conheci um descendente do Cavaleiro da Triste Figura. Certamente que era da família dos Quesada ou Quijada; sem dúvida que o era; se rijo de compleição, naquele momento, como fora seu ancestral, eu duvido; porém, certo que era seco de carnes, enxuto de rosto e triste; e como era triste a figura daquele cavaleiro que conhecí! Parecia imensamente distante dos dias de andanças, de aventuras e de bravuras; se é que algum dia honrou a tradição do legado do tio da Mancha. Assemelhava-se a perfeita imagem que se possa configurar do fim. O homem contava mais de 80 anos por aquela ocasião. Era um tipo longilíneo, de braços, pernas e tórax compridos, tal qual me pareceu e ficou gravada das gravuras a figura do Cavaleiro da Triste Figura. Seu rosto longo, de tão retas e verticais as linhas, parecia ter sido esculpido em madeira, entalhado. Um nariz longo descendo do meio de uns olhos pequenos postos sob umas sobrancelhas caídas e ralas, dando aí o ar de grande tristeza que me c