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Mostrando postagens de 2012

O DOUTOR DO ESPAÇO E O PEDREIRO FICCIONISTA

Ou ele cria nas próprias verdades ou o tempo o tornara um especialista na arte de imaginar convencer a quem o ouvia. Tudo era motivo para iniciar uma empolgada narrativa permeada pelo fantástico e o extraordinário. E tudo em seu universo narrativo era cheio de sólida convicção e indissolúvel ficção. Começava como quem nada queria. De repente, arrastava seu ouvinte por um universo místico de roças distantes na linha do tempo e extraordinários personagens ocultos que transitaram numa zona rural já extinta, ou, quem sabe, ainda transitem pelas cidades em seus múltiplos disfarces de pessoas comuns. “Quando criança, eu tive garrotil..., quase morri.” Disse o ficcionista em tom testemunhal. “Garrotil?” Perguntei eu com certa estranheza, pois nunca havia ouvido o tal termo. “Sim. Garrotil. Doença de cavalo, uai!” Afirmou ele com impaciência na voz e firmeza no olhar. Após apurar, pressupus que certamente se referia ao garrotilho, uma doença equina. E o pequeno homem, apoiado ao cabo da enx

O GRANDE CIRCO NONSENSE - HEMATÓFAGO

‘Quem?’, p erguntou prolongando ao máximo possível a extensão da pequena palavra com sua voz esganiçada a velha mulher magra, solteira e um tanto solitária imediatamente após soar o toque da campainha pelos cômodos desabitados de sua casa indo ecoar à porta da rua, possibilitando a quem acionou ouvir perfeitamente o som. ‘Sou eu, o m ágico Pipo!’, r espondeu o homem de cartola e capa preta plantado de pé en frente ao portão olhando um ponto fixo no muro da casa azul marinho. ‘Ah, é você, m ágico Pipo?! ’ , r espondeu a mulher magra, solteira e solitária com discreta porém perceptível alegria festiva na voz e familiaridade no tom : ‘ Eu estou esperando o açougue, o verdureiro e a farmácia ; a chei que fosse algum deles ; m as que bom que é senhor ! Entre, m ágico, entre ! Ela tá te esperando na cama, coitada! Essa noite não dormiu nada ; c onversou à noite in-tei-ri-nha, coitadinha . É a crise. A crise voltou . ’ Concluiu a mulher curvando a cabeça em uma flexão de seu pes

QUESTÃO DE PERFIL

Por um momento o silêncio opressor dominou o ambiente sombrio da sala do dono da empresa. E então o patrão, com um leve giro de sua cadeira, colocou-se em posição frontal diante à face do empregado, este já encolhido após assumir péssima postura desencostando do encosto da cadeira, curvando o tronco e deitando as mãos e parte dos antebraços no colo. ‘Pois bem, - começou por dizer o patrão - mandei chamar-lhe aqui, Igor, por um motivo que acredito seja bastante desagradável pra você. Tem corrido na empresa, e por diversas fontes, sendo essas fontes clientes, fornecedores e até mesmo os seus colegas de trabalho, que você é um sujeito estranho. Dizem que é muito individualista e que não aceita ajuda de ninguém causando assim lentidão na descarga das mercadorias, fato que eu mesmo tenho visto e estou em condições de confirmar. E dizem mais coisas graves a seu respeito, dizem que é muito calado e que não se entrosa de modo algum. Um esquisitão, com o perdão da franqueza. Mas o senhor

CHÁ DE INVISIBILIDADE

Imediatamente, Igor Socolov depositou a caixa de bacalhau norueguês na pilha, lavou as mãos e os braços na pia do barracão e foi até a sala do patrão que o aguardava com o telefone colado junto ao ouvido, falando e gesticulando. Tsarov fez um gesto breve com a mão esquerda direcionado ao rapaz para que este entrasse e outro ainda mais breve para que fechasse a porta atrás de si. Antes de fechá-la, foi possível ver Fedosov, o gerente bedel, sobressaltado, com o pescoço esticado e os olhos arregalados, a meio caminho para sua mesa postada diante à porta da sala do patrão. Tsarov, vendo que o empregado entrou porém não se sentou, fez outro gesto curto para que ele se sentasse e continuou ao telefone. Falava de uma carne seca. Dizia que a carne seca estava toda bichada e que não haveria como aproveitá-la de modo algum. Fazia uma pausa como que para ouvir seu interlocutor e repetia toda a história da carne seca que ficara exposta e teria contraído larvas. ‘Dimitri, a carne seca está podr

TODO O PRAZER DE FEDOSOV

Nos dias que seguiram, tudo era frio, poeira, sombras e mistérios. Sergey Fedosov encontrou-se no direito e liberdade de intensificar o espetáculo de seus horrores da mesquinhez. Fofocava à porta e nos vestíbulos, olha v a de soslaio, empunhava caras de deboche, deleitava-se em mofas e chacotas de toda espécie. Bastava que Igor entrasse em algum vestíbulo onde o bedel já se achasse para que o mesmo desatasse a rir com quem ali estivesse como se falasse algo de graça extrema. Igor só via motivos para trabalhar. E teve mesmo que trabalhar dobrado após o incidente das contas erradas. Enquanto todos os carregamentos eram descarregados na empresa por duplas ou trios de chapas, fosse a carga mais pesada que fosse, ninguém lhe vinha em auxílio; certo era que aquilo fosse por uma ordem do próprio Yuriy Tsarov. E Fedosov ficava a vigiar os outros para que ninguém se compadecesse da situação do isolado Igor. Se alguém se atrevesse a oferecer-lhe ajuda, imediatamente Fedosov repreendia o s

TRÊS RUBLOS A MAIS TRÊS RUBLOS A MENOS

Igor tomou o envelope contendo seu salário e, mais tarde, partiu para sua casa a levar o fruto de um mês inteiro de esforços para depositar nas mãos de sua esposa gestante já em tempos de dar à luz. Confiava em Yuriy Tsarov, seu patrão, de um modo pleno, amplo e irrestrito . Imaginava que Tsarov, sendo dono de patrimônio considerável para os padrões da pequena Uglich, sendo homem de grande prestígio local, figura bem quista, bem vista e influente na sociedade, jamais seria capaz de fraudar os vencimentos de seus pobres e dedicados funcionários. Antes de seguir com a narrativa, gostaria de aqui registra um pequeno à parte: como isento narrador que me pretendo, Deus permita-me não julgar este ou aquele personagem por suas boas ou más ações assim tomando partido na narrativa em favor de um ou de outro, pois que eu narre apenas e tão somente os fatos em essência e originalidade o quanto possível, e da história tire você mesmo, leitor, suas próprias conclusões com as ferramentas mora

OBSESSÃO É OBSESSÃO

“Permita que me apresente: Arkádii Ivánovitch Svidrigáilov.” E assim termina o primeiro volume da edição que estou lendo de Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, apenas Dostoiévski para os íntimos e também para os confiados. Embora sempre ouvisse sobre o gênio do autor, sou apenas um admirador tardio que o descobriu aos trinta e oito anos de idade, em uma primavera onde o calor de minha pequenina Ituverava jamais poderia eu imaginar ser atmosfera semelhante a qual se encontra na obra do autor russo ambientada na supostamente gélida São Petersburgo. O livro entrou em minha casa por uma coleção, uma linda coleção de títulos clássicos com capa de linha, fita marcadora de página acetinada, páginas suavemente amareladas conferindo um aspecto envelhecido, páginas novas, cheirosas. E como acontece com tantos livros que possuo, um dia vou e lhes tiro do sono da estante para a baila da leitura. E que grata descoberta fiz. Como estavam certos aqueles que o mitificavam! Fiquei bestificad

TODO DIA É DIA DE FINADOS

Há quem tema à morte e tudo faça para evitar o assunto. Há até quem se benza diante à menção da palavra como se o final fosse um castigo, uma praga dos céus ou dos infernos, de acordo com as obras e ações de cada qual. Qual quê? Qual?... Mas nem todos se encolhem diante o símbolo da derrocada final. Valentes? Não sei. Não sei não. Não mesmo. Sei que existem os homens sentados em suas cadeiras de descanso diante à s portas da última morada. Os vejo quando passo apressado entre um trabalho e outro. Penso que desafiam a morte e me parecem até zombar dos supersticiosos mais medrosos. Donos de suas cabeças brancas, barrigas proeminentes e redondas, famílias problemáticas, netas precocemente grávidas, aposentadorias magras, netos desempregados e ociosos, casas do conjunto habitacional e assuntos corriqueiros, ali permanecem grande parte do dia perdidos entre comentários sobre a vida alheia e da passagem do tempo, do clima, da violência urbana. Que lhes importa se quem passe f

MUY AMIGO SECRETO

Outubro. Vai começar! É tempo de brincar de amigo secreto. Começamos pelos rebentos e terminamos nos decrépitos. De mamando a caducando, os que querem e os que não querem irão participar, ‘não? Você não vai participar do amigo secreto deste ano?!’ ‘Ainda estou pensando. Até quanto será o presente?’ ‘Uma lembrancinha. Eu estou montando a lista de sugestões, quer sugerir algo?’ ‘Estou pensando.’ ‘Vai pensando, mas não demore, fecharei a lista no final da semana.’ ‘Tá.’ Há quem concorde em participar prontamente e ainda se saia com o clássico ‘Este ano já estou participando de três, será o quarto com este [sorriso].’ Na escola, no trabalho, na comunidade religiosa, no grupo de qualquer coisa e no balé das crianças de dez até doze anos. Não. No balé este ano não haverá brincadeira de amigo secreto. É que amiga secreta nem sempre guarda segredo de sua querida amiga desafeto. Os papeizinhos. Sim, os velhos e dobradíssimos papeizinhos do segredo. O selo do enlace, a chave do mistér

GAROTA FROM IPANEMA

Na manhã da última terça, a caminho da casa onde faria minha primeira visita do dia, não me preocupava o resultado das eleições municipais realizadas no último final de semana, mesmo ocorrendo que em minha cidade tudo se resolva em um só turno. O que me preocupava, motivado pela canção que ouvia no rádio, era saber que a garota de Ipanema já ia com sessenta e sete anos pela vida a fora. Egoísmo meu andar perdido assim em pensamentos banais quando o futuro das cidades acaba de ser traçado nas urnas donas de emissões virtuais? Talvez sim. Contudo não é algo tão particular e pessoal o meu pensamento, se considerarmos o fator efemeridade do tempo do qual absolutamente ninguém está livre. Dona Heloisa Eneida Menezes Paes Pinto, vovó Helô, na ocasião em que teria servido de musa à célebre canção hino da Bossa Nova, contava apenas verdes dezessete aninhos de idade e, segundo a própria, era ainda virgem. Uma menina, como diz a própria composição. E o tempo não perdoa mesmo nada nem ning

OS DOZE ZUMBIS & A CADELA BRAMA

A crônica vigente me permite dizer, sem revelar nomes e ou lugares, que todos os que viviam naquele apartamento conviviam mormente com as pulgas. Diziam que as pulgas eram da cadela Brama. A cadela tinha uma vasta pelagem preta e coçava-se quase que o tempo inteiro, e com o desespero dos atormentados, completamente entregue à aflição. Na sala, quando recebiam alguém, um fato raro, a cachorra chegava malemolente com seu rabo flácido pendendo de um lado a outro como um grosso visco preto.  Olhava quem ali adentrava com seu olhar lânguido, súplice, castanho e tristonho de vira latas. Sentava-se ao pé do visitante e, no momento seguinte, começava seu espontâneo espetáculo a morder-se em desespero progressivo e fremente. Sôfrega e infausta, a cadela mordia-se, gemia, chorava e rosnava em extraordinária contorção vertebral. Propositalmente, procurava encostar-se à perna do visitante para ter um ponto de apoio e assim melhor coçar-se. Ninguém comentava, mas era patente que a pessoa

BRB - NECRÓTICO

O quê dizer? Como explicar o terrível fato ocorrido durante o período de não mais que quinze minutos de sua ausência? E de quem era a culpa afinal, se todos os dias Bob/Rock/Blues tomava o seu banho de sol das nove na cadeira de descanso da garagem que também é alpendre? E o fiel cão Kuduro sempre ficou ali ao pé do decrépito dono. Latia para todo e qualquer que por ventura se aproximasse do portão usando a calçada ou até mesmo a rua à frente da casa. Se o individuo parasse então, aí sim o cão desatava a ladrar numa histeria demasiada até mesmo para um bicho primitivo como aquele. Macarrão, azeitonas pretas, manjericão, tomates maduros e o iogurte natural, e mais as laranjas que haviam acabado. Quanto tempo se leva para apanhar essa meia dúzia de itens em um supermercado aonde se vai ao menos duas vezes toda semana, mês após mês, por mais de três anos? E o supermercado ficava a apenas duas quadras e meia da casa do patrão. Cinco minutinhos para ir e, à passo apertado, instintiva

O BURACO DO COLCHÃO

Felício, sem um motivo para ti ela partiu, é verdade, é fato, porém, sem um motivo para ela, não partiria... E se não fosse o motivo, Felício, ah! como ela lhe fazia bem nesta vida, amigo. E você agora nem alcança o motivo dela ter ido, não é mesmo? Triste isso. Infeliz. Paga o preço do omisso aquele que é apenas distraído. Nada é justo, em se tratando disso. Talvez ela tenha acumulado motivos como quem guarda o dinheiro para a passagem de ida de moeda em moeda com o troco do primeiro pão do dia, de troco em troco de pão. Se fosse o trigo do pão, diria ter sido de grão em grão, sem gastar vintém, sem despender tostão. A alegria dos últimos dias, Felício, o que lhe fez pensar ser um gozo de felicidade plena essa sua vidinha, era o que você via enquanto Helena estrangulava um a um os bichos que lhe devoravam o riso para cumprir o papel de feliz ao seu honroso lado, meu caro. Felício, você foi lento no ponderar. O que foi isso? Não se deixa dormir tanto a quem se quer acordada.

AO CARPINEJAR PELA ESTRADA

Penso que não há certeza no desamor por unanimidade, mas há sim uma grande dúvida... A certeza seria libertadora, uma dádiva, uma benção. A dúvida é o que nos ata... E atados vamos. Pior seria não irmos. Ficarmos. Ficaríamos logo no início da infância, antes mesmo do terreno das memórias, ou nos primórdios da memória, memórias de fraldas. Ou na lembrança de Fanta Uva de algum colégio primário, quem sabe, como ocorreu ao poeta Carpinejar. Na memória furtiva do escritor, encontrei um paralelo a mais. Também, assim como o escritor, sou adepto à regressão por Fanta Uva. Contudo é sempre ao mesmo ponto que retorno, à minha São Caetano do Sul natal... A gente finge que cresceu, que aquela criança morreu, que somos irremediavelmente adultos... Um dia, quando velhos e faltos de auto controle, a criança salta e nos tomam por loucos... Loucura sim é passar pela vida fingindo e mentindo que não somos mais meninas e meninos, como se a vida fosse um passeio por fases...   “Criança di

O TREINAMENTO [O AR CONDICIONADO]

A sala era grande e o ar condicionado extremamente potente. Enorme daquele jeito, uma verdadeira aberração do antônimo de natureza. Talvez, todos nós que estávamos nas primeiras seis cadeiras do lado de frente para o ar condicionado, talvez todos nós saíssemos daquele encontro resfriados. E alguns poderiam até mesmo evoluir com pneumonia comunitária grave e, quem sabe, alguém poderia até morrer por conta desta pneumonia infeliz adquirida em um treinamento da empresa, indo a óbito, conforme gostam de dizer os profissionais do ramo que, apesar de usar o termo, não se atrevem a criar o verbo obituar, o que seria muito prático e adequado. Haja visto: ‘Seu Fulano de Tal da Silva, do leito 8, e oito é símbolo do infinito, obituou’. Mas eu precisava fazer algo. Não havia como sair do círculo formado pelas cadeiras ocupadas, sem atravessar à frente da palestrante, o que seria uma imensa falta de educação, e assim interromper a palestra. E, ao menos que me tirem do sério, sou sempre educ

O TREINAMENTO [O AR QUE RESPIRO É O AR QUE ME RESPIRA]

Não basta ter uma narrativa agradável, é preciso teor cultural para a crônica valer a pena de verdade. Não sei como é para os outros escritores amadores como eu, mas acho complicado depurar uma prosa boa, que valha a pena, a partir de fatos corriqueiros do cotidiano, sem nada mais literário. Sempre acho que o motivo para um texto razoavelmente interessante seria um fato de proporções extraordinárias, ao menos no imaginário de quem cria o texto. O comum é comum e me parece estar destinado ao lugar comum, à caixa de papéis velhos, ao quarto de despejo, ao velho baú de enxoval, ao esquecimento. E tudo vai sendo esquecido, e tudo vai sendo puído, e tudo é corroído pelo ar que ali também ficou aprisionado e não se renova. É o ar o provável responsável pela deterioração de tudo que está contido dentro desta bolha atmosférica. É tudo culpa do ar. E até chegar a esta conclusão, eu nunca havia entendido o verdadeiro motivo pelo qual pessoas de idade avançada possuem verdadeiro pavor por port