Pular para o conteúdo principal

O Sr. e o Dr. II



Ao perder a amada esposa em uma triste primavera, o ancião sentiu nascer-lhe uma dor profunda, a qual jamais havia sentido. Não imaginava que ao morrer seu amor ainda traria pungente aquele sentimento sublime de uma vida inteira. Sequer imaginou um dia perder seu amor. Porém o destino, indiferente que é as nossas tragédias pessoais, levou deste mundo a companheira do bom jardineiro. Ele contava 89 anos quando sentiu chegar a fria companhia da viuvez. Possuía filhos carinhosos, atenciosos que muito se esmeravam para suprir suas necessidades, contudo, a mais difícil realidade não havia maneira de remediar. Esta estranha chamada solidão, que adentrara em seus dias, e agora lhe era companhia ao levantar-se pela manhã, após a noite em que rolou na cama (que ficara enorme), ela também estava lhe mirando no café, no almoço, na longa tarde fria ou quente que fosse, no entardecer mais melancólico que já vira cair, e também na nova noite que viria.

Mas o amor quis falar.
O jardineiro não possuía mais as mãos firmes e hábeis para esculpir os arbustos, porém, suas mãos, com a graça de Deus, ainda podiam expressar o coração nas palavras que iam ao papel.
Na mesma primavera de perda e solidão, decidiu dar voz ao coração. Pediu um caderninho para a filha, disse que tinha umas anotações para fazer e; na primavera do ano seguinte eis que nascia o mais belo livro de poesias que eu já havia tomado conhecimento da existência. Ele o intitulou: “Ao Eterno Amor De Minha Vida”. Ali declamou belos sonetos de recordações, de saudades, de cumplicidade.
Todo ano seguinte, na primavera, pedia aos filhos para imprimir e encadernar novos sonetos. Depois, em posse do livro, o distribuía para toda família. Fazia um exemplar para cada ente, e alguns a mais; “para os amigos da família”, ele dizia. Quando o conheci estava trabalhando na nona edição. Atravessava um momento difícil, estava tratando de uma Pneumonia. Fui levado a sua presença, então me apresentei e disse que estava ali para ajudá-lo a restabelecer sua saúde. Ele então me olhou como se não tivesse entendido, olhou para filha, e retornou para mim com uma pergunta: _Você é médico? Expliquei que era fisioterapeuta. Ele continuou me olhando sem entender, eu repeti mais alto, pausadamente, até com uma leve separação silábica. O ancião voltou-se para a filha, e novamente para mim, e perguntou: _O Sr é enfermeiro? Expliquei sorrindo que eu não era enfermeiro; a filha acudiu e para simplificar as coisas disse: _Sim papai, ele é enfermeiro.
Achei melhor iniciar meu trabalho, afinal, o homem era do início do século passado, de uma época em que não havia fisioterapeutas conforme os conhecemos hoje.
Iniciei as terapias manuais e o ancião olhou-me nos olhos e disse num tom grave: “As pneumonias, no homem, são os capitães da morte e a tuberculose seu lugar-tenente, como disse certa vez Sir William Osler!”. A filha o exortou: _Papai o Sr é um exagerado, esta forte como sempre, e não teve mais que um início de pneumonia, o que já regrediu com os tratamentos; agora deixe o Dr trabalhar. Eu apenas sorria.
Em linhas gerais contou-me sua história. Foi então que tomei conhecimento do livro de sonetos, e das edições anuais, de sua vida na roça quando menino, de sua vida na cidade, como servente em uma escola onde passava as horas do almoço a ler poesias na biblioteca e copiá-las para declamar a sua musa póstuma. Contou que mais tarde tornou-se jardineiro, ali mesmo no colégio, e agora, pelo coração devastado por saudade, fez-se poeta.
A filha lhe chamava a atenção para concentrar-se nos exercícios. Ele os fazia, mas a cada movimento tinha necessidade de exibir mais um pouco de sua boa memória para os acontecimentos mais distantes.
Entre um exercício e outro recitava versos de sua autoria, de autoria de vários poetas, e por fim iniciou uma seqüência de cantigas dos cafezais. A filha já não mais o censurava, agora ria junto comigo.
Os exercícios transcorreram com a moderação adequada ao caso. Ao final, eu estava completamente agraciado por ter conhecido uma personalidade tão rara e agradável.
O poeta, ao ver que havia terminado os exercícios, encarou-me, apertou minha mão se despedindo e perguntou-me: _O Sr é médico?
Ao que respondi sorrindo que não. Ele olhou novamente para a filha, voltou-se para mim e disse por fim: _O Sr é então enfermeiro.
Eu expliquei novamente, mas sem ambição de convencê-lo. A filha abreviou dizendo: _Enfermeiro papai, o moço é enfermeiro. O poeta ancião, satisfeito, finalizou: _Ah, enfermeiro! Bom rapaz! Foi um prazer conhece-lo. Agradeci, e parti convencido que o amor é eterno, a poesia é a voz do coração, e a Fisioterapia, definitivamente, não é profissão do início do século passado.


(pequeno conto da autoria de Jefhcardoso, publicado nos jornais da região, assim como os anteriores)

Comentários

  1. Caramba Jehf!!!! Sem adulação,sua história é impressionante e muito envolvente! Isso te aconteceu mesmo? Impressionante!
    Meu caro, fico muito agradecido por você me avisar do nascimento de cada filho seu. Sem dúvida eu quero que você continue me avisando! E eu vou te perturbar toda vez que nascer um filho meu também! hehehe
    Grande abraço, my friend!

    ResponderExcluir
  2. Grande Zehcalote! Amigo, será um enorme prazer manter-me a par de suas produções.
    Este texto na verdade foi feito a partir de vivências. Noutras palavras; "baseado em fatos e conversas reais" (riso).
    Obrigado pela visita e pelo generoso comentário.

    ResponderExcluir
  3. Fiquei comovida com a história desse Sr..
    Quero um dia vivenciar um amor tão bonito e puro. Que deixará muita saudade e me inspirará de tal forma que escreverei um livro.
    Linda história!
    Abraço terno.

    ResponderExcluir
  4. ShayLynha, que bom que o meu conto encontrou a sua emoção! Desejo toda sorte do mundo no amor de sua vida. Abraço!

    ResponderExcluir
  5. Oi Jé! Hoje com mais tempo pude ler uma de suas involventes historias,essa vc já havia lido para mim em um café aqui em minha casa,e pela segunda vez te digo que e muito envolvente e rica em conteudo, gostei muito, fico orgulhosa voce com escritas tão belas, parabéns e que Deus o abençoe sempre, beijos.

    ResponderExcluir
  6. Parabéns, excelente trabalho.
    Me emocionei com o conto, é lindo!
    Adorei o blog!
    Te sigo com carinho.

    Um abraço.

    ResponderExcluir
  7. Oi Jef!!! Amei o texto! Ele é daqueles velhinhos q comentei no meu blog q gostam de andar de mãos dadas!! Vc é muito talentoso! Gostei muito de sua visita ao meu blog novamente e espero q os elogios sejam verdadeiros! Sabe é muito ruim vc querer explicações para entender e não para criar uma discussão e a pessoa se omite para fugir não sei do que nem de onde por isso finalizei com aquela frase pois quando um não quer dois não discutem (neste caso conversam, pois na verdade não gosto de discutir no sentido de brigar e agredir, mas discutir no sentido de entender, compartilhar, conhecer melhor as pessoas, enfim ...... Quanto a nossa árdua tarefa as vezes sim, mas muitas vezes não, podendo até, se quisermos ser bastante agradavel não é mesmo? abraços

    ResponderExcluir
  8. como vc coloca q o comentário estará visivel depois de ser aprovado???? Sou novissima quanto ao assunto blog rsrsrsrsrs pelo menos nesse assunto rsrsrsrsrs Obrigada

    ResponderExcluir
  9. Marion, que lindo você ter se emocionado! Gosto muito quando as pessoas adentram as profundezas de meu blog. Fico lisonjeado. Abraço e obrigado por sua doce atenção!

    Eliana Romeu, oi! Que bom que amou! Obrigado! Você é muito gentil. Sim, conversar é tudo em qualquer relação. Bem, ao labor dessas árduas tarefas ninguém se entrega de má vontade, a não ser que seja algo forçado, é claro. [sorrio]. Abraço e muito obrigado por sua atenção!
    Ah, sim, os comentários. Eles ficam guardados em uma caixa do blog, e após eu os ler e responder aqui eu os lanço.

    ResponderExcluir
  10. Jefh, como diria o "Rain Men","definitivamente" você é um dos meus! Sem mais!

    ResponderExcluir
  11. Sugestão: Blog violetas rendadas, de Rosilene Poffo. Abração!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Comente. É isso que o autor espera de você, leitor.

Postagens mais visitadas deste blog

Cartas a Tás (20 de 60)

Ituverava, 30 de junho de 2009 Aqui estamos, Tás. Eu e essa simpatia que é Lucília Junqueira de Almeida Prado, autora de mais de 65 livros publicados, capaz de recitar poemas de sua autoria compostos com cantigas de roça, bem como poemas de Cora Coralina, feito uma menina sobre o palco. Estive novamente na feira do livro, engoli meu orgulho de vez e abracei a causa. Fui lá não para vingar-me, com críticas sobre o fabuloso evento, nutridas por minha derrota no prêmio Cora Coralina, mas sim, para divulgar a campanha Cartas a Tás, que agora ganhou um slogan; “Restitua a cidadania do menino encardido que ficou famoso e apátrida”. Tás, você é de Ituverava e Ituverava é sua, irmão. Espero que aprove, meu mestre, pois para servir nesta batalha tive que ser um bom perdedor. E não é bom perder, isso aprendemos nos primeiros anos de existência, acho até que já nascemos com este instinto, pois quando uma criança toma por força algum objeto que por ventura esteja em nossa posse, qual menino não se

O Verbo Blogar

O Blog, á nossa maneira, á maneira do blogueiro amador, blogueiro por amor, não dá dinheiro; mas dá prazer. Isso sim. Quando bem trabalhado dá muito prazer. Quando elaboramos uma postagem nos percorre os sentidos uma onda de alegria. Somos tomados por uma euforia pueril. Tornamo-nos escritores ou escritoras que “parem” seus filhos; tornamo-nos editores; ou produtores; ou mesmo jornalistas, ainda que não o sejamos; tornamo-nos poetas e poetisas; contistas e cronistas; romancistas; críticos até. Queremos compartilhar o quanto antes aquilo que criamos. Criar é uma parte deliciosa do “blogar”; e blogar é a expressão máxima da democratização literária – e os profissionais que não façam caretas, pois, se somarmos todos os leitores de blog que há por aí divididos fraternalmente entre os milhões de blogs espalhados pelo grande mundo virtual, teremos mais leitores que Dan Brown e muitos clássicos adormecidos sob muitos quilos de poeira. Postar é tudo de bom! Quando recebemos comentários o praze

O Cavaleiro Da Triste Figura

Há algum tempo que conheci um descendente do Cavaleiro da Triste Figura. Certamente que era da família dos Quesada ou Quijada; sem dúvida que o era; se rijo de compleição, naquele momento, como fora seu ancestral, eu duvido; porém, certo que era seco de carnes, enxuto de rosto e triste; e como era triste a figura daquele cavaleiro que conhecí! Parecia imensamente distante dos dias de andanças, de aventuras e de bravuras; se é que algum dia honrou a tradição do legado do tio da Mancha. Assemelhava-se a perfeita imagem que se possa configurar do fim. O homem contava mais de 80 anos por aquela ocasião. Era um tipo longilíneo, de braços, pernas e tórax compridos, tal qual me pareceu e ficou gravada das gravuras a figura do Cavaleiro da Triste Figura. Seu rosto longo, de tão retas e verticais as linhas, parecia ter sido esculpido em madeira, entalhado. Um nariz longo descendo do meio de uns olhos pequenos postos sob umas sobrancelhas caídas e ralas, dando aí o ar de grande tristeza que me c