Pular para o conteúdo principal

Cartas a Tás (37 de 60)



Ituverava, 16 de agosto de 2009




Caro Tás, aqui estamos, amigo, mais uma vez a nos comunicar da maneira mais nostálgica que há para se convidar alguém a prosa. Você aí na capital não faz idéia de como são carregadas de recordações as ruas nas quais corríamos descalços sob pena de queimar a sola dos pés no asfalto quente.
Ainda hoje percorri um pedaço o qual me fez lembrar-te vivamente quando garoto. Falo da rua e da casinha onde foi um infante peralta a engendrar suas diabruras espirituosas. Quão espirituoso era o pequeno Tás!
Na infância longínqua eu tinha por hábito confeccionar pipas para as competições de agosto e setembro, quando os ventos são vigorosos por estas bandas. Eu não dispensava um cerol na linha, o que sei ser errado, mas o fazia a fim de cortar a linha de algum engraçadinho que ambicionasse por fim a nossa algazarra aérea. No entanto nem sempre meu cerol era capaz de manter o objeto colorido atado à linha que vinha na latinha em minha mão. Neste momento Tás entrava em ação, era como um cão fiel a perseguir a nave de bambu e papel que ziguezagueava a deriva após ser vilmente cortada em algum ponto frágil da linhada.
Triste dia aquele em que uns garotos mais velhos, uns marmanjos, lhe cercaram e lhe surraram nas imediações do largo velho. Mais triste fora minha atitude, que por falta de espírito, por alguma razão covarde que me tomara, talvez por medo de também levar a pior contra os marmanjos, me fiz ficar calado a espreitar de longe as barbaridades que o Alemão e seu grupo cometeram contra você, meu amigo.
Vi a tudo e não fiz nada. Este peso há de me acompanhar até o centésimo aniversário de minha vida. Este é o preço que pago e pagarei por ter me omitido no momento de sua aflição. E pior foi ver-te trazer-me a pipa nas mãos, entregar-me aquela pipa estúpida, como prova de sua lealdade incondicional. Vê-lo com o nariz escorrendo, com as roupas sujas e desalinhadas, com o semblante humilhado por ter sido vítima da gangue do Alemão, foi na verdade o início de meu martírio de consciência, amigo.
E hoje ao passar diante a casa em que viveu em sua infância, mais que uma recordação das competições de pipas me veio a triste lembrança de ter faltado com um grande amigo. Mas que o seu nobre coração saiba me perdoar esta falha, pois muitas foram as enrascadas que se meteu e não lhe faltei.

Comentários

  1. Jefh meu amigo... O "Tás" vai vir receber um Título de Honra ao Mérito em Outubro na Câmara... vá ao encontro dele para vcs relembrar os fatos dessa infância nostálgica...
    Abraços!!! Almir F. S.

    ResponderExcluir
  2. Valeu Almir! Creio que o Tás não me receberá com honras ao mérito por meu blog, porém, se acaso ele entrar numas de agredir-me, será o momento de dizer, face a face, que esta cidade é pequena demais para nós dois. Mas a palavra séria é que, será sim uma boa oportunidade de saber se agrado, ou se...agrado só um pouco, com minha homenagem no Cartas a Tás. Abraço amigo.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Comente. É isso que o autor espera de você, leitor.

Postagens mais visitadas deste blog

Cartas a Tás (20 de 60)

Ituverava, 30 de junho de 2009 Aqui estamos, Tás. Eu e essa simpatia que é Lucília Junqueira de Almeida Prado, autora de mais de 65 livros publicados, capaz de recitar poemas de sua autoria compostos com cantigas de roça, bem como poemas de Cora Coralina, feito uma menina sobre o palco. Estive novamente na feira do livro, engoli meu orgulho de vez e abracei a causa. Fui lá não para vingar-me, com críticas sobre o fabuloso evento, nutridas por minha derrota no prêmio Cora Coralina, mas sim, para divulgar a campanha Cartas a Tás, que agora ganhou um slogan; “Restitua a cidadania do menino encardido que ficou famoso e apátrida”. Tás, você é de Ituverava e Ituverava é sua, irmão. Espero que aprove, meu mestre, pois para servir nesta batalha tive que ser um bom perdedor. E não é bom perder, isso aprendemos nos primeiros anos de existência, acho até que já nascemos com este instinto, pois quando uma criança toma por força algum objeto que por ventura esteja em nossa posse, qual menino não se

O Verbo Blogar

O Blog, á nossa maneira, á maneira do blogueiro amador, blogueiro por amor, não dá dinheiro; mas dá prazer. Isso sim. Quando bem trabalhado dá muito prazer. Quando elaboramos uma postagem nos percorre os sentidos uma onda de alegria. Somos tomados por uma euforia pueril. Tornamo-nos escritores ou escritoras que “parem” seus filhos; tornamo-nos editores; ou produtores; ou mesmo jornalistas, ainda que não o sejamos; tornamo-nos poetas e poetisas; contistas e cronistas; romancistas; críticos até. Queremos compartilhar o quanto antes aquilo que criamos. Criar é uma parte deliciosa do “blogar”; e blogar é a expressão máxima da democratização literária – e os profissionais que não façam caretas, pois, se somarmos todos os leitores de blog que há por aí divididos fraternalmente entre os milhões de blogs espalhados pelo grande mundo virtual, teremos mais leitores que Dan Brown e muitos clássicos adormecidos sob muitos quilos de poeira. Postar é tudo de bom! Quando recebemos comentários o praze

O Cavaleiro Da Triste Figura

Há algum tempo que conheci um descendente do Cavaleiro da Triste Figura. Certamente que era da família dos Quesada ou Quijada; sem dúvida que o era; se rijo de compleição, naquele momento, como fora seu ancestral, eu duvido; porém, certo que era seco de carnes, enxuto de rosto e triste; e como era triste a figura daquele cavaleiro que conhecí! Parecia imensamente distante dos dias de andanças, de aventuras e de bravuras; se é que algum dia honrou a tradição do legado do tio da Mancha. Assemelhava-se a perfeita imagem que se possa configurar do fim. O homem contava mais de 80 anos por aquela ocasião. Era um tipo longilíneo, de braços, pernas e tórax compridos, tal qual me pareceu e ficou gravada das gravuras a figura do Cavaleiro da Triste Figura. Seu rosto longo, de tão retas e verticais as linhas, parecia ter sido esculpido em madeira, entalhado. Um nariz longo descendo do meio de uns olhos pequenos postos sob umas sobrancelhas caídas e ralas, dando aí o ar de grande tristeza que me c